Vida Baleia

 


Era Baleia aquela magricela cadela da famosa obra Vidas Secas. É também Baleia sem fama, nem dono, nem alguém que lhe registre a trajetória, uma cadela qualquer, invisível em sua pobreza canina, esquecida em seu câncer que lhe devora de dentro para fora. São muitos os invisíveis (não importa se quadrúpede ou bípede) que morrem todo dia e todo dia apodrecem as ruas com suas carnes em putrefação jogadas num canto qualquer. Essa é a história de um final “feliz” da Baleia de Sobral.

- Acho que não vou suportar, dói muito, meu estomago dói, estou com fome. Se aquele moço bom não vier hoje, não sei de onde vou tirar forças pra procurar comida. Pensou, Baleia enquanto fuçava um saco de lixo em busca de algo pra comer. E enquanto o fazia, sentiu a pedrada nas costas, da vizinha que tinha posto o lixo lá. Ouvindo a mulher reclamar por que ela rasgava o lixo, não entendeu o motivo da zanga:

- Se ela não quer mais, por que não posso pegar?”. Em sua “longa” trajetória de vida nunca havia roubado nada de ninguém. Podia se orgulhar de sua honra, só mexia nas sacolas das calçadas. Mas a segunda pedrada lhe roubou os pensamentos, pois pegara bem em cima do seu tumor das costas. Grunhiu, correu e achou que tivesse visto o deus dos cachorros em formato humano. Era sr. Farto, nome que ela lhe dera por ele sempre lhe dar muita comida, e água! Ele era perfeito! Além da fartura da comida lhe dava carinho aos montes e deixava que ela ficasse na calçada dele. Naquele dia ao vê-lo queria correr e abraça-lo e dar-lhe todo o seu amor canino que superava todo amor humano por que não carregava pesos. Já havia esquecido as pedradas ainda que seu tumor estivesse doendo muito. Sr. Farto xingou a mulher das pedradas que Baleia chamava Sra. Suvina por que lhe negava o lixo. Se falasse poderia dizer para o sr. Farto que não brigasse com ela, no fundo, ela não era má, só tinha mania de limpeza e cuidados em excesso com a calçada dela. Mas não podia falar, então comeu, bebeu e deitou por que aqueles tumores todos lhe doíam até alma. “Será que tenho alma?” Pensou, parou de filosofar e dormiu um pouco. Sonhou que estava sendo levada para longe do Sr. Farto. Um trambolho lhe deslocava. Era rápido. Nunca havia andado naquilo e sentia muito medo, principalmente por que Sr. Farto não estava com ela. Aquilo era real? Sr. Farto disse que a acolheria quando ela parasse de sangrar. Tinha esperança que um dia o maior tumor caísse e ela ganhasse uma casa. E agora estava sendo levada por estranhos pra um lugar estranho. Era um pesadelo, daqui a pouco acabaria.

- “Onde estou indo? O que farão comigo? Não sirvo pra nada, como disse Sra. Suvina! Por que me sequestrariam? Não estou sonhando”.

Diante da mudança, Baleia não sabia bem o que se passava, um misto de medo e esperança no incerto a atravessava. Suas limitações de cadela não a deixavam perceber que talvez houvesse ali uma possibilidade de vida melhor. Como um nordestino que chega a São Paulo sem eira nem beira, Baleia chegou ao lugar que lhe fora designado para tratar de seus tumores cancerosos. Recebida por duas pessoas que tratou logo de nomear, Luz e Alívio, sentiu que Sr. Farto poderia ser momentaneamente substituído, por que não poderia esquecê-lo para sempre, já que suas mãos carinhosas era tudo de bom que ela tinha tido na sua difícil vida canina.

Luz e Alívio eram incríveis. Ela os amou no primeiro momento em que os viu. Ela, também poderia ganhar o título de Miss Simpatia e ele de Mãos Talentosas. Mas quando ela via Luz, parecia que toda a escuridão da dor se acendia e aparecia um clarão e a dor passava. E ele com seus esforços lhe tocava o corpo carcomido pelo câncer e lhe aliviava a agonia.

- “Luz? Alívio? Pra onde estão me levando? O que eu fiz de errado? Pra onde estão me levando?”

Baleia havia se enganado redondamente. Luz e Alívio a levaram para um lugar de tortura. Furos em sua pele doída, apalparam, colocaram algo no seu pescoço que a impedia de ver os lados. Isso lhe lembrava máscaras que mataram pessoas num passado bem distante. Mas a questão agora, era: “O que está acontecendo?”

Ao sair do veterinário, sentia-se melhor. Todas as coisas que haviam sido feitas tinham sido assustadoras, mas depois de ser apalpada, analisada, e de terem lhe dado umas comidinhas sem gosto e que não tiravam a fome, Baleia voltava para “casa” com Alívio. Espera, casa?

- “Estava chegando numa casa? Estou entrando numa casa? Não sentirei mais frio de noite? Nem dormirei na calçada escaldante de dia? Alívio, obrigada!” Chateou-se por não poder dizer isso na linguagem humana, então gentilmente lambeu o pé de seu novo salvador.

Os dias foram passando, as voltas ao lugar da tortura sempre lhe assustavam, mas já tinha se habituado a ter Alívio e Luz por perto que a banhou e “Nossa! Como era bom tomar banho num dia quente”. Sentia agora seus tumores cedendo, mas as comidinhas em forma de caroços que lhe davam pareciam que ao matar o tumor também a matavam. Sentia muita dor. Alívio lhe dava outras comidinhas pra tentar ajudar, mas não resolviam muita coisa. Em sua sabedoria canina, percebia que aqueles humanos não lhe faziam mal, mas a dor era imensa. Percebeu que dali pra frente havia dois possíveis caminhos. O fim da dor física seguido de uma história recheada de comida, brincadeira e quem sabe brincar com crianças que ela amava, mas ninguém a deixava brincar por que ela era da “rua” ou o fim de tudo, de todas as dores para uma dimensão desconhecida. Percebeu que de todo modo seria um final feliz, pois havia sido vista. Havia sido importante para alguém. Levaria consigo a memória de Luz, Alívio e Farto. Tinha sido importante na vida de três humanos e isso era muito mais do que muitas pessoas tiveram em suas vidas inteiras. Ao menos sua vida não havia sido seca de afeto.

 

 


Comentários

  1. Ô Dê, que Baleia veja assim... E que a vida possa ter trilhas que levam à felicidade!

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  2. Ao menos esse tanto de afeto...

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