A alienação nossa de cada dia

 


 

Espichou bem as pernas sob a mesa, queria tirar as meias, mas aí já era demais. Queria afrouxar o cinto. Mas a esticadinha nas pernas já dava pra alguma coisa. Essa hora era uma luta, o sono rondava sorrateiro, pronto para dar o bote. Cochilinho de quinze minutos faria uma diferença danada, mas não dava. Se ajeitou melhor na cadeira dura, sentiu o cóccix, (oh, dorzinha miserável!) precisava para de enrolar e procurar um médico.

A apresentação se desenrolava e já não prestava atenção desde o terceiro slide, uma canseira daqueles números e gráficos, um rebuscamento danado para falar o óbvio: estavam fodidos. Oscilou entre a impaciência e o descaso, optou pelo corpo presente e a cabeça ausente. Deixou que os números dançassem e as barras e pizzas coloridas desfilassem a sucessão de erros e falhas, agora quantificados. Que sono, meu Deus!

O rapaz que servia o cafezinho estava demorando ou seria impressão? Aprumou o corpo e fez uma anotação na agenda. O rapaz entrou discretíssimo, deixou seu café já adoçado e antes de sair olhou para onde apontava o dedo na agenda. Sorriu largo e assentiu com a cabeça (3X0 vamos ver da geral?). Saiu quase sem ser notado. Tomou o café aos golinhos, aproveitando bem aquele docinho... Aprendeu assim de menino, a mãe adoçava o café e pingava um pouco de leite que criança não tomava café puro.

Aquilo não acabava nunca! Sua irritação estava indisfarçável. Deu um basta pouco sutil. Mão na mesa, falou para acenderem as luzes que daquilo já estava farto. Passou a mão na cabeça e, sem se alterar, pediu que todos saíssem. A apresentação estava encerrada, seria disponibilizada no email de cada um e a equipe que traçasse estratégias para o próximo trimestre, não havendo uma reversão nos números a conversa seria outra, aliás, não haveria mais conversa.

Na sala contígua olhava pela parede envidraçada a tarde avançar no caos, era uma vista bonita. Assentia um cansaço íntimo, todas as coisas que precisavam ser feitas e as pessoas não tinham coragem de fazer, postergavam, procrastinavam e, assim, o suceder dos dias não variavam. Um pouco era culpa sua, devia ser mais enérgico, fazer uns cortes, exigir cumprimento de metas, mas a verdade é que estava farto daquilo tudo e não sabia como parar.

Pediu pra secretária segurar suas ligações, adiantar a papelada pra assinar e ajustar a agenda que hoje pararia às 18h. Olhou para a bolsa sobre a cadeira e sorriu, uma revigorada instantânea para terminar o expediente. Cantarolava enquanto fazia de conta para si mesmo que lia o relatório enfadonho da apresentação. Que desperdício de papel!

Lembrou do pai, esfregando as mãos enquanto ouvia o jogo pelo rádio. Era uma aflição feliz, mesmo que o time perdesse, ele não ligava, gostava mesmo era daquela narração, aquele movimento que só imaginava, o frenesi. Demorou toda uma adultice para entender isso.

Faltando quinze minutos para o fim do seu expediente auto determinado, foi se trocar. Jeans, tênis e a camiseta do time, agora na segunda divisão. Devidamente uniformizado encontrou com o rapaz no ponto de ônibus, também devidamente uniformizado. Brincaram com o placar, fizeram pouco do adversário, foram fazendo a escalação, de pé, durante todo o trajeto. Iam nessa animação quando pararam no trailer de cachorro-quente, já em frente ao estádio. Dois completos e duas Cocas, cada qual pagou o seu. Enquanto comiam, sentados no banquinho de plástico, a torcida esquentava a garganta. Na fila para entrar, engrossaram o coro. Tudo era muito simples.

Descobriu logo de cara que o rapaz era cheio de princípios e morria de medo da mãe. Herdou a paixão pelo time do avô, o pai nunca conheceu. Um dia, chegando ao escritório, o ouviu conversando com o zelador sobre o time e entrou no meio, o assunto esticou com o rapaz, que sempre foi muito reservado. Levou-o uma vez ao camarote, o rapaz agradeceu muito, mas pareceu não gostar. Da outra vez, quando o convidou, o rapaz disse que quem convidava era ele e assim foi na arquibancada, adorou aquilo. Daí em diante iam aos jogos sempre que podiam, na geral, no meio da paixão herdada por outros também. Uma vez quis apostar o placar, mas o rapaz não apostava dinheiro, aceitou a aposta de uma cerveja, e assim nasceu a tradição, toda vez apostavam uma cerveja, que tomavam no bar da esquina, de pé no balcão, enquanto esperavam um táxi para ir embora, única concessão que o rapaz fizera. Era um rapaz muito velho e cheio de retidões.

O estádio nunca estava muito cheio, nunca tinha confusão e por umas 3 horas ele era mais um torcedor anônimo e feliz, igual ao rapaz.

 

Comentários

  1. Amém...ser/ficar invisível por opção...

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  2. Fiquei pensando nisso que você diz... a diferença que marca certos tipos de alienação. Há alienações que são privilegiadas...

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  3. sim...não sei se isso vai passar, mas confesso a você que muitas vezes gostaria de não ser lembrada, de não ser vista. gostaria às vezes, não raras, de não saber...um privilégio é o que isso me parece agora.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)