A menina e a casa

 

Ela não tinha ainda completado 11 anos. Morava sozinha com sua mãe numa casa confortável, mas sem excessos. Dois quartos, um banheiro, uma pequena cozinha americana e uma sala de jantar que era imaginariamente dividida pelo sofá em sala de estar. O luxo residia no mini quintal onde a mãe estendia as roupas em um fio esticado entre o muro e a bonita goiabeira – que, infelizmente, era de goiabas brancas. Que desperdício! Dizia para si a menininha.

Afeita ao silêncio por ter aprendido desde cedo a brincar sozinha, a menina mantinha intensas falações interiores. Vez por outra, uma voz escapava e era possível ouvir a agitação que movia aquele corpinho perambulando pelos cômodos. Impedida de sair por causa do inferno pandêmico que a era explicado e reexplicado nos programas que a mãe assistia, a menininha começou a sofrer com a solidão. Mesmo quem é acostumado a brincar só, sente o baque de não ter a oportunidade de brincar junto eventualmente. Há meses ela não ia na escola e só encontrava as amigas por vídeos. Elas riam e conversavam, mas era quase palpável que algo continuava faltando. Ela não sabia o quê, mas sentia tudo. Com uma clareza de dar inveja ao sol.

Um dia ela perguntou à mãe por que dois era tão pouco agora, se antes era suficiente. A mãe não soube responder. Limitou-se a acolher a questão e dizer que os números, assim com as palavras, sempre guardam um mistério. A criaturinha deu-lhe um abraço apertado e estranhou quando lhe cruzou o pensamento que se pudesse seria só uma com sua mãe. Tinha a impressão que entendia cada dia menos dessa coisa de quantidade: o querer ser mais de dois, às vezes, se apresentava como o querer ser um só.

Foi numa manhã de um sábado qualquer, que a menina começou a reparar nos outros habitantes. Sempre os vira, mas nunca os contabilizara na categoria ‘moradores’. Pode ser que tenham sido aquelas aulas de ciências sobre habitat que levou sua percepção a mudar, pode ser que tenha sido só a saudade de se saber em meio a uma coletividade fisicamente alcançável. Fosse o que fosse, ela agora os contava: formigas, aranhas, centopeias, calangos. Todos partilhavam com ela aquela residência.

Não sabia bem o motivo, mas alguns bichos não entravam na lista de cidadãos da casa: nem moscas, nem pernilongos, nem baratas. Talvez porque voassem e pudessem estar registrados oficialmente em outro ponto fora do perímetro que ia da soleira da porta até o muro verde-envelhecido que ficava logo atrás da goiabeira. Foi sincera ao admitir, porém, que esse critério não era muito válido para as baratas, pois desconfiava que nem todas eram de asas. Imaginou que as baratas, voadoras ou não, podiam até ser habitantes, mas não tinha visto de permanência. Afinal, quando uma era pega no ‘país’ de sua casa, a pena era sumária: uma chinelada ou uma borrifada de veneno.

A descoberta da comunidade que partilhava a casa com ela, trouxe alívio à solidão.  A menina passou a compreender que os espaços são relativos aos tamanhos que temos e ao que conseguimos enxergar neles. Deu-se conta que, para aquelas formiguinhas minúsculas que gostavam de entrar no açucareiro, a casa era o mundo todo. Notou que, apesar dela nunca poder experimentar essa sensação de casa-mundo, ela podia sentir o mundo-da-casa e habitar nas várias dimensões que ele carregava.


Comentários

  1. Meu espaço é onde eu me reconheço e sou acolhida. Pode ser pequeno, mas é do tamanho do mundo.

    ResponderExcluir
  2. Ah, as descobertas q imensam...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)