Ladrões

 

Roubavam tudo. De bugigangas que iriam para o lixo até joias preciosas. Era da natureza deles, diziam. Embora seja muito fácil e cômodo atribuir nossas características à natureza, é preciso convir que a noção de propriedade não tem muita valia nas relações entre seres não-humanos. Podemos contestar isso em termos lógicos, mas isso levaria esse texto aos soníferos nichos da filosofia, do direito e, logo, logo, você dormiria. Não! Basta aqui elucidar que os micro-ladrões operavam por deslocamento de bens. E, o que é o roubo senão um deslocamento não autorizado de objetos?

Naquele dia, eles se espalharam sorrateiramente pela casa toda. Como era invisíveis para os olhos não treinados – os meus só os notaram depois que morri e virei essa consciência sem forma que habita nos corredores do mundo – os moradores não suspeitaram do horror que lhe aguardava.

Mal raiou o dia e a ação começou: três dos ladrõezinhos esconderam o sutiã que a mulher havia separado junto à farda de trabalho na noite anterior. Ela procurou em todas as gavetas do seu guarda-roupas. Até nas do marido! Nada. Com muito custo, convenceu-se de que deveria ter imaginado ter separado aquela peça específica. Era difícil aceitar que havia fantasiado até mesmo o pensamento enquanto selecionava o item ontem de que aquele era o ideal porque não apertava, nem deixava os peitos demasiadamente à mostra naquele novo tecido que inventaram de colocar no uniforme.  O fato é que não estava convicta, mas não tinha tempo para ficar se questionando. O tempo para tomar banho, café e sair era cronometrado.

A pressão do relógio teve que ser superada quando ela, já com um sutiã cujo ferro a incomodava terrivelmente, desceu para fazer o café e avistou o ‘desaparecido’ em cima do pote de açúcar na despensa. Tentou dar um sentido ao inusitado. Quem sabe quando pegou água antes de ir para cama, acabou levando o bendito para lá? Mas, não podia ser. A despensa tinha porta e chave e para se beber água não se precisa de nada que fique lá.

Quando o marido chegou bufando de ódio na cozinha, 15 minutos depois – ele acordava mais tarde porque a responsabilidade pelo café era dela! – ela ainda estava fazendo mil e cálculos mentais para justificar a flutuação da sua roupa íntima. O marido nem reparou que a mesa ainda não estava posta. Todas as suas forças eram da raiva que dirigia ao filho mais velho. Esse menino é impossível! Acredita que ele levou meu celular para sala depois que fomos nos deitar? Pior, tirou do carregador e agora só tenho 15% de bateria!

A mulher achou aquilo estranho, mas decidiu não interferir quando o esposo foi acordar o jovem aos berros já prometendo mundo e fundos convertidos em sanções e castigos. O coitado do menino, atordoado, demorou uns minutos para entender as acusações. Jurou de pé junto que não fora ele. Invocou os nomes dos santos de devoção. Nada surtiu efeito. O pai só suspeitou que ele pudesse estar dizendo a verdade, quando o rapaz chamou pela alma da falecida avó. Aproveitando o silêncio da dúvida momentânea, a mãe comentou do caso do sutiã. Olhou como se fosse a encarnação de Sherlock Holmes para o menino a fim de sondar se ele agora dera para esse tipo de brincadeira estúpida. Viu o filho tão estarrecido quanto ela e o pai. Definitivamente, não fora ele.

Sentaram-se os três à mesa a tentar montar o quebra-cabeças. Por exclusão, o culpado seria o filho mais novo. O problema é que o menino estava desde ontem de tarde na casa de um amigo. Procuraram por janelas abertas. Brechas e pistas de alguma invasão. Correram a vasculhar o esconderijo da merreca de dinheiro que guardavam em casa. Tudo lá! Tudo de ‘valor’ estava lá. Chegaram à conclusão que a casa tinha ratos. Sem café da manhã e já com meia hora de atraso, os adultos saíram para trabalhar, deixando o filho incumbido de providenciar veneno para os roedores no caminho de volta da escola.

Quando a casa se esvaziou dos moradores, os serezinhos regozijaram-se de sua atividade bem sucedida: Mais uma para conta dos ratos! Enquanto eles riam, balancei minha inexistente cabeça espiritual (a força do hábito é algo duradouro) e me resignei a avisar aos ratos da casa que ficassem atentos a ‘petiscos’ diferenciados. Afinal, como consciência amorfa preciso zelar pelas espécies terrenas mais promissoras.

Comentários

  1. Adorei os ratinhos...mas sua consciência é bem safadinha, hem?

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  2. Ah, pronto! Agora São Longuinho perdeu a função de vez...
    "Espécie terrena mais promissora", tenho q concordar q estamos em último nessa escala hierárquica.

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  3. Esqueci de dizer, ainda bem q não tem imagem dos meliantes... rsrsrs

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