Sem lua a noite fica mais escura

 


Fechou os olhos, queria só a sensação. Uma brisa fresca, o murmúrio longe. De olhos bem fechados sentia até o cheiro. Fechou os olhos. Talvez tivesse sido assim. Ou talvez a raiva e o medo lhe tenham feito chorar, gritar e querer matar. Depois querer morrer. Não sabia.

Ninguém contou direito, quer dizer, ninguém contou o importante, que quando a noite vinha, de calor se sucumbia e de saudade se morria, para ressuscitar; não no terceiro dia, como um cristo abençoado, mas na primeira hora da manhã, como um orixá desgraçado. Ninguém sabia mesmo. Ninguém.

“Coisa irrisória, olhando de fora. Coisa besta, nem chama atenção! A distração dos passos nem provoca o olhar, nada. Como pode ser?” Pensava nisso enquanto olhava absorta para o encaixe das pedras, mais precisamente para o vão preenchido sob a grade velha, desgastada pela corrosão do tempo (que nada perdoa, sobretudo a memória). Uma casa de pedra, que tosca ironia.

Mais uns passos e estava dentro. Um pouco relutante, um tanto sufocada, meio encurvada.

Demorou um pouco para acostumar-se à escuridão, ao ar pesado, à angustia. As pedras encaixadas eram de uma beleza insultante e descabida. Espaços contíguos e paredes grossas. Espaços exíguos e paredes muito sólidas. Uma construção para sobreviver ao homem, à muitos homens, para permanecer na transitoriedade da vida. A vista da luz era um acinte, uma provocação e uma necessidade. Talvez, ela ali, ficasse agarrada à grade, desesperada por uma ilimitação... Talvez a ignorância de outra realidade a fizesse feliz ou resignada... Talvez. Há mais de nós onde as lacunas aparecem, do que de fatos explícitos. Onde se deita, onde se espreita.

Por dentro e para dentro, nas laterais, janelas para o inferno (ao menos assim lhe pareceu quando o sol se posicionou em determinado ponto). Entre o fascínio e o horror não podia desviar o olhar.

Pensou no intolerável calor, no odor de carne em putrefação, no úmido bolorento do tempo das chuvas compridas, na carniça dessa vida. Um embrulho no estômago. Nojo e vergonha misturados. Vontade de correr e pernas plantadas, enraizadas nesse sabido, porém desconhecido no íntimo. Uma cela que sela as existências todas, como um umbigo, que vai escondido e escancarado. Uns passos e tudo se abria, se descortinava.

Fechou os olhos, queria só a sensação. Uma brisa fresca, o murmúrio longe. Mas de olhos bem fechados sentiu-se nessa noite, que de calor se sucumbia e onde todo o dia morria.

 

Comentários

  1. Rapha, que tradução da dor alheia (e nossa) foi essa? Espetacular

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  2. Tia, uma relato bonito do horror. Todo o dia (se) morria.

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