Toda lucidez será alada

 

 


Parecia confuso, mas nunca estivera tão lúcido. A lucidez embriagada de quando se compreende tudo de uma vez e não há tempo para ordenar o pensamento, no atropelo de não perder nada, na urgência de se apoderar desse lampejo. Quando a gente entende alguma coisa, que acha difícil, fica com esse receio de esquecer o entendimento, se não for rápido. E, na pressa, pode passar essa impressão: estar confuso quando é a lucidez que se faz presente.

Ficou olhando muito tempo, um tanto admirado daquilo, que nem era incomum. O que o admirava era a forma como via agora –um pé de passarinhos!

De relance, achou que fossem jacas, mas não havia jaqueira no quintal. Então viu uma coisa de desprendendo rumo ao chão e logo subindo, um passarinho com uma lesma no bico. Foi nessa hora que entendeu tudo. Todo o universo circunscrito ali, todo o senso de oportunidade do passarinho, ou seria seu desejo? Riu sozinho, pensando no absurdo dos bichos terem desejo. Mas depois ficou sério, e se tivessem? Por via das dúvidas, deu uma antropomorfizada na coisa e decidiu que tinham.

Daí pra frente foi um tal de imaginar os desejos dos passarinhos, das lesmas, das formigas, do cachorro. Foi um terço da manhã com o olhar contemplativo e a cabeça em ebulição. Foi um mergulho bem fundo nos pensamentos, despertos pelo cheiro do café. Foi aquela confusa lucidez.

Um pé de passarinhos, quem diria!

Comeu as últimas migalhas do pão, lustrou o bico, conferiu a envergadura. Então, lançou-se com as asas viris no dia plúmbeo, pelo céu pesado, da mansarda ensimesmada.

 

Comentários

  1. Fantástico, eu em minha humanidade que se acha a racional, pensei que fossem devaneios humanos, mas era de alguém muito maior.

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  2. Eu adorei! Inclusive a foto que, num relance inicial eu vi como uma imagem de biombo japonês.... Essa coisa da lucidez, do tudo de uma vez e da confusão reveladora. Amo. Me encheu de leveza.

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