À beira do riacho
Durante
muito tempo acreditara que a vida se compunha de coisas grandiosas. Viver era
uma estrada cujo o ponto de chegada estava bem delineado. Disseram-lhe, antes que visse o mundo com seus próprios olhos, que havia uma lista
de pendências a ser cumprida. Uma comprida lista de pendência. Não culpava os
portadores dos discursos que lhe incitaram a crença. Eles também receberam
esses óculos turvos e a listagem de afazeres antes mesmo de saberem reconhecer suas
imagens nos espelhos. A existência era uma coisa intrincada demais para se
enfrentar sozinho. Era natural que nunca ninguém houvesse partido do zero. E, era
óbvio que viver requeria separar o joio do trigo. O problema era saber, fora
dos campos e dos grãos, o que situar na coluna do joio e o que merecia ser
alocado junto ao trigo.
Foi
preciso um milhar de anos para se dar conta disso. Um milhar de anos? Sim,
porque quando se usa antolhos, um minuto pode demorar séculos. O caminhar
parece um calvário e nosso corpo um peso. Os outros? Melhor nem dizer. Faltam palavras
para expressar o incômodo que sua presença nos impele.
Tudo,
agora, parecia cristalino como a água que corria naquele pequeno riacho. O
enorme cabia no interior de um átomo. O relevante era o que não se destacava. A
vida não estava ao final, residia no meio. A estrada que o mostraram desde
menino era reta e lisa. A trilha dos sentidos que podiam lhe fazer ser o que é e o
que era passível de tornar-se era tortuosa e esburacada. A vida estava
emaranhada no voo aleatório de um mosquito, nas sementes aladas que deixavam a
mãe-árvore para rumar para o desconhecido, no pó que se acumulava sobre os
móveis.
Sua
descoberta cabia na palma de sua mão. Mais certa que as contas feitas
pela calculadora. Estava extasiado diante de si e dessa compreensão
incompreensível que lhe enchia os pulmões de ar e acelerava o coração. Cada micro
pedaço seu tornou-se visível. Suas células e as organelas que lhe habitavam
pareciam não estar mais contidas em seu corpo. Ele era único e vários. Entre
sua individualidade e o exterior havia apenas uma fina e vacilante linha
divisória.
Tirou
a roupa e adentrou no riacho. Não lhe passou pela cabeça a preocupação se algum
eventual passante ficaria assustado com a cena. Deixou a água gelada fazer
cócegas nos seus pés. Esticou a mão para tocar o limo macio que crescia nas
pedras. Sentou-se vagarosamente na parte mais funda do córrego. Molhou os
cabelos e arrepiou-se com as gotas que escorriam deles por suas costas. Mirou a
luz do sol que era suavizada pelas folhas das plantas do entorno. Fechou os
olhos e teve a certeza que vivia.
Mto viva! Serena e intensamente viva... Q delícia de sensação ao te ler!
ResponderExcluirTia, uma mistura de um monte de coisa, inclusive das tuas fotos de hoje.
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