A cama de gato das certezas duvidosas

 

Fechou o livro sob o impacto da frase. Aquilo foi, de alguma maneira, chocante. Era tão óbvio e simples... Não, não podia ser só isso. E a coisa toda de um ideal sorridente, pleno e intenso? Agora esse minimalismo?! Ah, não... Essa ideia quase frugal e até conformada, não podia ser. Estava na cara que esse parvo não fazia ideia do que falava, no auge da indignação se permitiu pensar, sem culpa, “tinha que ser português!”

No banho, ainda sentia uma ligeira irritação: como isso? Quer dizer que tudo até aquele momento fora uma grande farsa? O caminho da felicidade, a busca, qualquer coisa, não passava de um grandessíssimo embuste? Logro puro e descarado? Ah, não... Não mesmo!

Quando saiu do banho já era quase noite, pelo vitrô aberto uma brisa fez seu corpo arrepiar, sensação boa. Fechou o olho enquanto chacoalhava a cabeça deixando a água do cabelo respingar no chão, costume de criança que nunca perdeu.

No quarto, com a luz apagada, os móveis eram só contornos. Ficou uns minutos contemplando a quietude, inundada de silêncio, e sentindo a calmaria. Aquele momento, antes da claridade se fazer e dar forma e som às coisas, era seu instante de exatidão. Por uma fração mínima de tempo, sabia-se absolutamente ali. A fugacidade da sensação era diretamente oposta à sua intensidade, então, sentia um tipo de cansaço inexplicável: o cansaço de existir daquele modo, naquele tempo, daquela forma. Suspirava enquanto se vestia.

E agora essa, esse puto português a lhe esfregar na cara que a felicidade era aquilo. Em toda sua limitada compreensão não sabia ser outra coisa, não podia (porque não sabia), ou não queria, ou, ou... sabe-se lá! Enfim, era frustrante. Era frustrante que não houvesse Shangri-La, nada idílico, nada além daquilo, aquela pasmaceira, a mesmice. “Ser o que se pode...” e quem pode alguma coisa? Então a felicidade era essa coisa morna e estúpida, miserável e humana? Estava claro que o maldito português arruinou sua vida, seu ideal, a si.

Obrigou-se a confrontar seu raso mais raso. Se era isso, a felicidade, então não a queria. Buscaria outra coisa, desejaria outros desejos. Estava decidido. “Ser o que se pode...”. Enquanto tomava um gole d’água, observou o livro no braço da poltrona. De repente, uma paz inédita insinuou-se em suas entranhas e foi, gradativamente, amortecendo sua existência medíocre, seu ser irrisório e inapto. A felicidade, agora, era um vasto desconhecido possível.

Comentários

  1. Que texto é esse, minha gente! Sem palavras para dizer do quanto, de algum modo eu me encontrei muito feliz nele.

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  2. Rapha, ouvi tua voz em algumas frases do texto. Uma alegria a mais ouvir a voz da autora, quase apalpar o som e os sentidos (que invento contigo e a tua revelia) de um texto tão massa...

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