A infância, a razão e os bichos


O caminho de casa até a escola dava uma distância de 4 km. Era uma hora de caminhada que ela fazia com suas pernas curtinhas de sete anos. Amava aquela travessia. Perdia-se com tudo que via. Sempre tinha um coleguinha que gritava seu nome para trazê-la de volta à realidade. Uma vez esqueceu-se das regras de higiene e sentou-se para ver o desabrochar da borboleta. Nunca tinha visto algo mais fantástico. A lagarta feia que ficava enrolada numa folha saindo vagarosamente com suas cores laranja e preta era de uma beleza que acreditava que não veria nunca mais na vida. Nesse dia não houve quem a tirasse dali até a lagarta se desfazer e em seu lugar sair aquela que voaria devagar e calmamente. Foi seguindo o bichinho lindo e questionando por que era chamado de inseto. A professora não deveria saber das coisas. Algo tão lindo não poderia ter um nome tão feio. Livre de seu passado a borboleta voou mais longe e ela resolveu ir para a escola. Chegando muito tempo atrasada e suja devido ao percurso feito em parceria com o bichinho lindo não lhe fora permitida a entrada. Teve de esperar sua mãe chegar para busca-la. Já imaginava tudo: as chamadas, o puxão de orelha, mas isso não lhe tiraria aquela imagem da cabeça. Decidiu que queria ser uma borboleta. Voaria longe dos cobertores que protegem.

O caminho para a escola tinha cheiro de cocô de vaca, e ao mesmo tempo tinha a música que elas mugiam. Pensava que as vacas eram muito felizes por que toda manhã cantavam. Talvez por que tudo nelas era útil: seu leite alimentava ao bezerro e aos humanos, sua carne alimentava aos humanos (menos a ela que se recusava a comer a carne dos bichinhos), e até seu cocô servia para o jardim de sua mãe. As vaquinhas eram especiais. Teve a sorte de um dia ver a vaca do sítio Esperança parindo seu bezerrinho. Sentou ao lado do homem que tentava ajudar a vaquinha e assistiu ao parto estupefata. Quando o bebê nasceu foi uma tristeza só. Sr. Zé do leite tentava consolar a mamãe vaca e a si mesmo. Era sua única vaquinha e seu bezerrinho nascera morto, “coisa mais sem sentido, nascer e não ter vida”, pensou arrasada. Sem entender bem as coisas a mãe vaca tentava erguer seu rebento inerte. Ali não compreendeu o sentido do sofrimento daquela mãe. Decidiu que não seria mãe. Nunca! Jamais queria aquele amor que não tem fim mesmo diante do “único mal irremediável (...) por que tudo que é vivo, morre”. Em sua cabeça de sete anos decidiu que inventaria um controle remoto para desligar o amor nas pessoas para que se esquecessem dos amores que se vão, mas mesmo assim não queria ser mãe. Achou o parto muito violento com o corpão da vaquinha.

Tentava conversar com a professora e os outros colegas na escola sobre a magia dos animais que encontrava no caminho. Queria dizer das lições com eles aprendidas. Queria falar da importância do casulo para a liberdade. Achava que o casulo era como colo de mãe, quentinho e protetor, mas se ficasse lá pra sempre não poderia pular a cerca do quintal para pegar as amoras do vizinho e essa sensação era algo pelo que todo mundo deveria passar. Colocar um bebê no mundo deveria ser uma escolha muito bem pensada. A vaca não raciocinava, não achava justo que ela engravidasse sem decidir por isso. Que o mundo ficasse sem leite então. Ninguém queria saber sobre casulos, bebês mortos, sapos que nadavam de olhos abertos, pássaros que voavam fazendo a letra V. Lembrou que caiu num buraco cheio de lama olhando para o céu a acompanhar um revoada e impressionou-se com o fato de que os pássaros fazem a letra V de voo. Estariam eles mandando alguma mensagem em código? Vamos Voar? Viva a vida? Vejam o voo da borboleta? Venham? Eles mudavam de posição e o que estava na frente ia pra trás e outro assumia a dianteira. Achava que ali tinha uma lição que não conseguia mesmo entender, mas trocar de tarefa lhe parecia algo justo e pensava que sua mãe poderia aprender muito com os pássaros pois sempre lhe mandava fazer várias tarefas em casa enquanto seu irmão jogava bola lá fora e seu pai ficar assistindo TV no sofá. Decidiu que não queria um lugar onde os meninos podem relaxar e as meninas tem de fazer as coisas sozinhas. Não se casaria. Pronto estava decidido. Os pássaros deveriam ter razão apesar da professora dizer que só os humanos faziam uso da racionalidade. Começa a achar que isso não era bem uma vantagem.

Sua maior lição veio da cobra. Ouvia aquele choro triste do sapo e nunca o tinha visto coaxar daquela forma. Parou e buscou com o ouvido de onde vinha aquele sofrimento todo. E o viu já em seus momentos finais sendo engolido por aquela tão temida criatura. E contra toda a dor que poderia estar causando, a cobra seguia a engolir devagar e calmamente aquele pobre coitado. Não havia nela nenhuma culpa. Que lindo! Quando ia para igreja saia sentindo-se a pior das crianças de tanto que o padre impunha culpa em suas meninices. Olhava a firmeza da cobra ao engolir os gritos do sapo. Imaginava o desespero do coitadinho. Tudo acontecendo tão devagar. Ele, o sapo, também por ela observado pegava os insetos e engolia rapidinho. Mas ele tinha uma língua ligeira. Foi ele quem a ensinou a nunca hesitar quando a questão é sobre comida. A cobra, agora lhe ensinara que não se pode lamentar pelo que se é. A cobra era só uma cobra. Nem boa nem má. Não fazia sentido sofrer com o sofrimento do sapo se era necessário comê-lo para sobreviver. Não raciocinar definitivamente tinha sido a coisa mais racional que poderia ter ocorrido no universo.

Cresceu, mudou-se de sua cidadezinha do interior. Nada de casamento, nada de filhos. Não terminou o fundamental maior. As escolas lhe cansavam com suas ladainhas racionais. Morava numa casinha no interior da mata, o mais distante possível da civilização e suas regras para que assim pudesse voar.  Vinha gente de toda parte para comprar seus livros artesanais com histórias de bichos criadas num mundo que a razão não alcança.

 

Comentários

  1. Que sabedoria bonita. Uma lindeza esse texto 💕

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  2. Adorei! Fiquei pensando se eu compraria o livro ou um terreno ao lado para ser vizinha e só observar os voos.

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  3. Acho que vocês fariam uma sociedade.

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