A morte, a lagartixa e o tango
Abriu
o aplicativo. As notícias tinham o cheiro podre de cadáveres deixados a céu
aberto. O fedor da morte impregnou suas narinas. Insuportável. Sufocante.
Clicou no ícone da rede social com esperança de anestesiar-se. Não importava
quantos vídeos de bichinhos fazendo peripécias visse, o odor não se dissipava.
Tentou um jogo. A tevê. Um livro. Inútil.
Quis
fugir. Não havia para onde. O cemitério era lá fora. A podridão parecia ter
dominado tudo. Não tardaria e ele mesmo seria um corpo jogado na rua. Havia sentido
lutar quando a derrota era certa? Havia sentido viver se a morte era
inescapável? A cabeça fervia enquanto ele olhava fixamente para o teto branco
acima de sua rede.
Os
fogos de artifício interromperam seu torpor. O time do vizinho estava indo bem
no campeonato. Será que esses estúpidos não sabem o que se passa? Será que não ligam?
Não ligar, no fundo, era não saber o que se passa. Odiou o vizinho, os times e
seus torcedores. Um ódio marcado pela inveja deles terem conseguido fugir da
realidade de forma tão bem sucedida. Entendeu que seus pequenos e intensos
desafetos eram só mais uma tentativa desesperada de escapar do horror.
Sentiu-se moralmente baixo. Um verme. Incapaz de regozijar-se com as micro-alegrias
dos outros; condenando todo e qualquer prazer que não estivesse à altura de seus
preciosos valores. De que valem os valores quando se perde a empatia com as
pessoas?
A
morte agora não vinha de fora. Não eram as notícias, o governo, o mercado, as
indústrias, as instituições. Ele era o executor. O carrasco a enforcar qualquer
um que desviasse de suas normas. Pensou em suicidar-se. Mas, matar-se só reafirmaria
que ele era um assassino. Era um beco sem saída. Um paradoxo intransponível
para sua parca intelectualidade.
De
repente, uma lagartixa entra em seu campo de visão. A aparição inesperada fez seus
pensamentos darem uma guinada. Que bicho esquisito! Sobreveio-lhe a lembrança
das aulas de biologia: esses animaizinhos indefesos podem se regenerar. Quando
perdem traumaticamente alguns pedaços, conseguem fazê-los crescer novamente. Sem
dúvida um poder incrível. Achou curioso que, apesar dessa habilidade fantástica,
as lagartixas não deixassem de ser frágeis. Fraqueza e força talvez não fossem
exatamente opostas.
A
frase ecoou dentro de si por alguns segundos. Transmutou-se. Morte e vida também
não eram mera oposição. Sustentavam-se tensamente. Esboçou um sorriso. Sentiu como
se houvesse encontrado a pedra filosofal.
O
mundo exalava morte. As notícias, as anestesias, os paradoxos, as fugas bem e
mal sucedidas. Tudo seguia existindo. Provavelmente, continuariam existindo por
tempos incontáveis, alterando-se apenas em aspectos milimétricos, quase
imperceptíveis.
Imaginou
que o irracional e a racionalidade bailavam em um tango dramático. Nessa dança,
ele desempenhava o papel de agente duplo. Era infiel a ambos. Sua infidelidade
garantia a continuidade dos passos, a beleza dos movimentos, a tristeza e a sedução
inerentes ao ir e vir daquela coreografia.
Levantou-se
da rede. Tirou as latinhas de cerveja da geladeira e colocou na sacola. Destrancou
a porta. Saiu em direção à casa do vizinho. Quem sabe eles poderiam assistir o
segundo tempo juntos?
Gente, que guinada!!! Adorei o desfecho e me identifiquei muito com o sofrimento seguido de "vou ali viver enquanto a morte não chega"...rsrs
ResponderExcluirPois é, Dê, acho que, de um jeito ou de outro, a gente vai vivendo nesse balanço maluco entre desistir e resistir.
ExcluirA gente nunca sabe o q se passa, mal desconfia... Mais próxima ou mais distante, a todo instante, a morte é uma constante e a vida tb.
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