Como São Jorge chegou à lua?

 


Quando a tia perguntou se já tinham feito a oração, antes de apagar a luz, responderam que sim. Na verdade, não tinham e não intencionavam, há muito abreviaram esse ritual maçante, agora era só um “obrigado Deus. Anjo da guarda me protege. Nossa Senhora me abençoe. Amém”. Concluíram que não precisava mais que isso, afinal era muita gente rezando, pedindo e agradecendo o tempo todo, eles deviam cansar também. Para evitar confusão, combinaram de não contar isso pra ninguém, nem pro padre no dia da confissão antes da primeira comunhão. Eram cúmplices nessa praticidade da fé.

Depois da luz apagada sempre demoravam um pouquinho pra falar, é que os olhos precisavam se acostumar à escuridão, os ouvidos tinham que identificar os barulhos familiares e assim o coração não bateria com susto, daria para disfarçar o medo na voz.

Tá acordado?” Essa era a sentença que trazia conforto, quando a resposta era positiva, quase sempre. Só quando brigavam que um não respondia, por pirraça, mas se arrependia logo. Então conversavam até dormir, nem percebiam o momento exato que o sono os vencia. Eram as conversas mais sérias, os maiores segredos, a maior confiança. Parecia que, não se vendo, não tendo que olhar no olho, era mais fácil falar umas coisas, as palavras iam saindo, saindo...  Não havia receio do pensamento alheio, do julgamento, da troça.

Naquele dia a grande questão era São Jorge, o santo preferido dos dois. E como não seria? Era soldado, tinha cavalo e espada, matou um dragão para salvar uma princesa! A curiosidade era saber como e porque virou santo. Cada um contou sua teoria, especularam como chegou à lua, discordavam em quase tudo, cada qual querendo ser o mais sabido e dando a resposta mais mirabolante que podia pensar. Só concordavam em uma coisa, era o santo mais poderoso de todos, porque também era um guerreiro. Decidiram perguntar de novo à tia, ela sabia a história de tudo quanto era santo. Da última vez ela se atrapalhou um pouco, e acabou perdendo a paciência, mas foi porque o doce não dava ponto.

Pensando bem, talvez a tia não soubesse tanto assim dos santos. De outra vez brigou com eles porque “Onde já se viu, São Sebastião flechado por índios?!” Ué, mas quem usa arco e flecha é o que? Índio, oras! Acharam melhor nem alongar a conversa, saíram de fininho e deixaram a indignação para conversa da noite, naquela noite concordaram em tudo. 

Sentiam os olhos piscando longo, o sono sentado nas pálpebras, fizeram um acordo: quando crescessem iriam até a Capadócia, terra de São Jorge. Nessa hora cada qual inquietou-se a seu modo, uma aflição danada foi tomando conta deles, um com medo de ser muito longe, é que enjoava no carro quando viajavam; o outro pensando em que língua falavam, se teria jeito de aprender até lá. Como já tinham combinado não iam voltar atrás, que palavra dada é sagrada, mas já sentindo arrependimento, calaram.

“Tá acordado?” Quis ficar em silêncio, mas não conseguiu. Perguntou se não era melhor ir só até a igreja de São Jorge, na cidade vizinha, afinal, sendo assim pertinho podiam ir logo, não precisavam esperar ficar grandes. Ufa! É, a ideia parecia boa, quem sabe não iam já na outra semana, quando a tia fosse comprar seus tecidos e linhas? Ufa! Ajustaram o combinado com alívio e sem a vergonha de quebrar a palavra, era um bom arranjo. Então, os barulhos da noite foram diminuindo, já nem ouvia o descompasso do coração se aquietando. Capaz até de sonharem com São Jorge na lua, será que ele deixava dar uma voltinha em seu cavalo, empunhar sua espada, ser seu cavalariço? Será? Coisa boa é dormir desejando sonhos de contentamento.

 

Comentários

  1. Ai que delícia...eu tinha conversas assim com minhas primas...e também engabelávamos minha tia sobre o rezar...bateu uma saudade gostosa.

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    1. Saudade deu foi desse verbo, q eu adoro, engambelar (ou engabelar). A cara da minha vó, das nossas prosas...

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  2. Gostoso demais ler esse texto. Essa coisa bonita da curiosidade inventiva, da palavra negociada,da fraternidade que precisa de luzes apagadas... Amei!

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    1. Dessas formas de entender cumplicidade desde sempre...

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