Homens e Ratos


Trinta e nove quilos de muitos ossos e pouca carne. Um rosto anguloso como se o corpo refletisse a dureza da vida que levava. Na pele queimada de sol, as dobras das rugas provavam que a velhice não pode ser corretamente contada pela simples passagem do tempo. Mais do que o tempo, o que envelhecia as pessoas era o quanto de força precisam fazer para resistir a ele. Para o homem mais forte que conheci, atravessar 24 horas era uma batalha. Ele se deu conta dessa verdade prática muito cedo: engolindo o meio pão endurecido e a xícara de café amargo que a mãe lhe dava ainda antes do sol nascer.

Da infância soube pouco. Ser criança era um luxo que sua família nunca pudera bancar. A diferença entre meninos e adultos era marcada só pela ida à escola. Por uns anos, sentou nas carteiras quebradas e copiou, não sem grande dificuldade, letras e números que se desenhavam no quadro às custas do desaparecimento gradual do giz. Reparava mais no pó branco que fugia pelo ar do que nas escrituras da professora. Ainda assim, aprendeu a reunir pedaços do alfabeto e formar seu nome e a somar, embora, em sua realidade, a subtração fosse mais presente.

Encontrei com ele no dia em que resolvi ir caminhar na praça. Minha primeira reação ao vê-lo foi o temor e um certo asco. Admito que, naquele momento, o identifiquei mais com um rato do que com uma pessoa. Você pode até me chamar de insensível ou playboy, mas, ao menos, eu nomeio certeiramente os valores que me foram ensinados. O rato-hominídeo passou ao meu lado com sua imensa sacola de recicláveis sem levantar os olhos. Ele sabia que era preciso se poupar para as lutas inevitáveis ao invés de gastar sua parca energia querendo o reconhecimento de desconhecidos. A brancura dos meus tênis de jogging era suficiente para que ele soubesse que nós não pertencíamos ao mesmo mundo. Foi ele quem me mostrou, depois, que há muitos universos em cada pequeno espaço que habitamos.

Passadas algumas semanas desde o dia na praça, voltei a perceber sua presença na rua perto do meu apartamento. De dentro do carro, enquanto aguardava o fluxo de carros se mover, observei despretensiosamente os personagens que me rodeavam. Lá estava o rato bípede com sua magreza ambulante arrastando latinhas e enfiando as mãos nos tambores em busca de aumentar sua coleção fétida. Não o temi, ao contrário, convencido de minha superioridade, senti pena da sua situação. Praguejei mentalmente contra o governo como faz um bom cristão. O sinal esverdeou finalizando aquela análise antropológica.

Descobri que se chamava Pedro, numa noite sem estrelas em que, após de tomar algumas cervejas em casa, decidi sair para esquecer a briga por telefone com uma namorada. Puto e já inundado do descuido inerente ao excesso de álcool, não segui o ritual dos bem-de-vida que manda prezar pelos bens, evitar passeios fora de zonas bem policiadas e toda aquela lenga-lenga que quem é, no mínimo, de classe média sabe.

Remoendo as palavras da discussão, caminhei sem rumo não sei bem por quanto tempo. Quando notei, já estava rodeado de moradas que sequer merecem o título de casas. Procurei uma placa de rua ou qualquer referência que pudesse ser útil. Estava perdido e, para piorar, avistei um grupo de vultos que falavam alto no quarteirão seguinte. O efeito anestesiante da cerveja sumiu de repente e, ciente da minha fragilidade, comecei a tremer. Foi quando ouvi o barulho de alumínio sendo amassado a alguns metros à minha esquerda. Avistei o rato da praça, o quase-gente que revirava lixeiras. Em um cálculo instantâneo, julguei que o catador era menos ameaçador que as sombras falantes. Sem maiores elaborações, minhas pernas me aproximaram dele cautelosamente. Minha boca, em uma atuação quase independente, proferiu com uma voz firme e baixa que pretendia disfarçar meu terror um ‘Boa noite, senhor’.

O som metálico do esmagamento das latinhas parou. Um par de olhos castanho escuros me encarou. Relembrando os fatos, entendi que foi naquele exato segundo que Pedro começou a parecer uma pessoa para mim. Muito mais do uma cor amarronzada, aqueles olhos eram portadores de uma dignidade profunda.

Minha boca prosseguiu em seu improviso:

- Desculpe incomodar o senhor, mas poderia me dizer como chego na avenida dos Barões?

Meu interlocutor emitiu a resposta com uma sonoridade forte e gentil:

- Boa noite, moço. Para chegar na avenida, o senhor precisa voltar naquela direção umas seis quadras. Mas, a uma hora dessas, talvez o senhor prefira andar um pouco mais para chegar lá. Falou apontando no sentido de uma ruela.

Não foi preciso raciocinar para saber que voltar por onde vim seria burrice. O problema era que eu não sabia como me guiar na trilha alternativa que me fora oferecida. Perigava me embrenhar em lugares mais assustadores. Respirei fundo e toquei o ombro de Pedro, que já retornara ao seu repetitivo serviço de amassamento:

- O senhor se importaria em me levar até a avenida por esse outro caminho? Posso lhe recompensar quando chegarmos lá – disse já sem conseguir esconder minha vulnerabilidade.

Pedro coçou a cabeça parecendo calcular quanto tempo precisaria para terminar sua tarefa noturna. Jogou todas as latinhas no grande saco trançado, tirou do bolso uma enorme sacola plástica dentro da qual enfiou as latas ainda não amassadas. Colocou a sacola plástica dentro do saco de ráfia e deu um nó apertado. Só então me dirigiu a palavra:

- Se o senhor quiser, lhe acompanho, não precisa pagar. Mas, aguarde aqui porque vou guardar meus metais.

Esbocei um sorriso de agradecimento, apesar de ter odiado a ideia de ficar esperando. Enquanto ele entrava no barraco ao lado, eu me perguntava que riscos estaria correndo com a escolha que tinha feito. Se ele tivesse mostrado interesse pela recompensa, se tivesse perguntado quanto receberia, eu me sentiria mais seguro. Saber o preço de alguém é sempre reconfortante, porque nos dá a exata medida do nosso poder. Mas, não tinha como dar para trás agora. Se aquilo fosse uma emboscada, restava-me confiar que minha saúde e força física me davam alguma vantagem.

Pedro cerrou a porta do barraco e grunhiu um ‘bora moço’.

Não trocamos nenhuma palavra nos 150 metros iniciais. Eu tentava sondar nos trejeitos dele se estava rumando para uma armadilha ou não. Os passos de Pedro não vacilavam. Notei sua esqualidez e como, mesmo sem o saco, ele andava curvado. Seus braços e pernas eram, paradoxalmente, musculosos. Não parecia haver naquele corpo qualquer espaço para uma carne inútil. Diferentemente da minha impressão no dia na praça, me dei conta que ele não fedia. Cruzou minha cabeça que determinadas ideias se materializam aos sentidos. A de pobreza era mal cheirosa e feia.

Na metade da segunda quadra, decidi puxar conversa. O silêncio era enlouquecedor e, cogitei que, falando com Pedro, talvez eu conseguisse informações importantes, caso ele tivesse algum ‘plano’. Como não sabia bem o que dizer, fui falando aquelas bobagens que fomos ensinados a usar para preencher com vazios o mundo sonoro. Pedro respondia com gestos ou com frases curtas. Não parecia interessado em banalidades.

Quando entramos em uma viela sem nenhum poste – iluminada apenas com as fracas luzes que saiam das frestas das casas – e com esgoto a céu aberto, soltei sem querer: nossa que horror!

Pedro entortou o pescoço de modo que seus olhos se fixassem nos meus. Pedi desculpas, tomado de medo. Sem tirar os olhos de mim, ele afirmou:

- O senhor não tem que se desculpar. É um horror mesmo. Todo mundo que vive aqui há de concordar com você sobre isso. Sabe, moço, a gente vive como bicho, mas não é por gostar não. Nem bicho gosta de miséria. Mas, a miséria existe e tocou a gente ser os miseráveis da vez.

As palavras de Pedro me nocautearam. Não sei se fiquei mais zonzo por seu conteúdo ou por terem sido expressas sem nenhuma marca de lamento. Pedro as pronunciou como se fosse um intelectual da Sorbonne dando uma palestra para ingressantes: consciente do fundamento de seus conceitos e despreocupado com eventuais questionamentos que pudessem vir da audiência.

Pode ser que o que tenha me desferido um golpe fatal, tenha sido compreender, a partir daquele comentário, que Pedro não só era gente, quanto era mais gente do que eu. Não era mais possível encaixotar Pedro no armário dos catadores, dos coitadinhos, dos merecedores do meu bom coração e dos meus trocados. Pedro sabia que vivia no horror. Não se iludia, nem se deixava iludir: ser gente era seu destino, porém não lhe era facultado entrar no trem da civilidade. Se quisesse ir, que fosse a pé. E Pedro ia. Com calos, corcunda, latas e cansaço, Pedro seguia altivo para a civilização. No trem, babacas como eu, encostam seus narizes na janela e confundem os nobres com os ratos e os ratos com os nobres.

Comentários

  1. Espetacular. Digno de ser trabalhado no Laeddes. As desigualdades que geram vidas desiguais, olhos que julgam, cheiros que incomodam, pensamentos que não podem resolver as injustiças estruturais.

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  2. Q toda gente tem seu preço é fato, como tb é o de não conhecermos todas as moedas, logo seu valor...

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    1. É verdade, tia, nos falta imaginação/amplitude monetária!

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