O sonho
Não
interessava se chovia ou fazia sol. O mundo era, para ela, o mesmo. As pequenas
variações não alteravam a figura principal da realidade. Acordar, trabalhar, dormir.
O ciclo da vida parecia um vídeo em um loop automático.
Talvez
fosse fim de fevereiro quando teve o sonho. Depois daquilo, nada voltaria a
girar no eixo normatizador ao qual estava acostumada. Não conseguia contar o
sonho. Não tinha vocabulário e, ainda que tentasse, sabia que qualquer palavra
seria mal empregada para descrever aquela fluidez de sensações, imagens,
ideias. Era impossível organizar o caos, comunicá-lo sem desrespeitar as
diretrizes estreitas da lógica.
Aquela
vivência noturna havia sido tão potente que as atividades de vigília se
tornaram mais insignificantes. O primeiro a notar a mudança foi o namorado. Percebeu
que estava distante. Suspeitou de algum problema no trabalho. Eventualmente,
entendeu que não podia ser. Pensou em traição. Descartou logo a ideia, os
indícios não batiam. Ele falou com amigos comuns e até com a mãe dela. Criou-se
uma rede de pessoas que concordavam na análise: ela não era mais como antes.
Não
adiantavam perguntas. Ela habitava outro reino. Toda sua concentração e força
voltadas para reviver aquele indizível e impartilhável. A parte mais importante
do dia era a hora de ir para cama. Nos finais de semana, tomava remédios que a
permitissem um tempo de sono profundo mais prolongado.
Não
tardou a sentir que precisava de mais, queria mudar-se definitivamente para essa
outra dimensão. Anseios amorosos, profissionais, familiares, intelectuais, estéticos,
tudo perdeu rapidamente seu viço. Futilidades incapazes de lhe mobilizar
verdadeiramente. Procurou na internet receitas
caseiras capazes de gerar efeitos alucinógenos. Depois, descobriu que o
entregador de comida do restaurante vizinho saciava também outras fomes. Pode-se
dizer que todas as suas economias foram consumidas alucinadamente.
Já
havia anunciado a venda de boa parte de sua mobília quando a intervenção
ocorreu. Levaram-na para uma dessas fazendas onde se cantam músicas gospel e
obrigam as pessoas a falar de si sentadas em uma roda. Riu sozinha ao constatar
que, numa realidade onde a vida acontecia em um loop automático, era bem coerente
que ‘cura’ dos que se rebelassem demandasse círculos.
Conseguiu
sobreviver aos três meses que ficou internada nutrindo-se da experiência
intensa que acessava às noites. A determinação de ‘dormir cedo’ era sua
salvação daquele inferno monótono da ‘clínica’. Fora da ‘reabilitação’, o peso
da vida não era muito melhor. Mantendo a analogia cristã, era o purgatório.
Traçou um plano de fuga. Na verdade, mais correto seria afirmar que cuidou
atentamente dos detalhes de sua mudança de domicílio. Calculou os riscos. Pesquisou
as estratégias mais eficazes.
Quando,
na manhã daquela quinta-feira, meteu-se na frente de um caminhão, o porteiro do
prédio jurou que havia sido um terrível acidente. Os pais e o ex-namorado derramaram
um choro seco, desses que marcam um luto já maduro. Amigos que um dia lhe foram
próximos apostaram em suicídio. A única evidência contrária à tese era o sorriso
que ainda estampava aquele rosto arrebentado.
Qdo um abalo sísmico acontece no nosso íntimo e ninguém sabe, ninguém entende... As falhas geológicas da alma são um mistério.
ResponderExcluirVerdade, tia. E é tão bom quando encontramos quem ampare e respeite nossos abismos.
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