A cegueira que nos alimenta
Há coisas que precisam sair de
dentro de nós para um outro lugar que não seja nosso corpo. Essa é uma parte da
minha realidade que eu gostaria de esquecer, mas não devo esquecer, vou tentar
tirar de dentro de mim por que por vezes o cheiro que vem com a lembrança me
faz um mal enorme, fico cheia de ódio e isso suga minhas forças. Não devo
esquecer, todavia. Isso faz parte de mim. Como aquela parte do corpo que se
você pudesse arrancar e deixar nada, você o faria, mas o nada não move as
coisas, então você não arranca, pois é, assim é esse pedacinho de mim que não quero,
mas preciso dele. O dia em que comi carne podre.
1989 – Manhã de domingo. Eu havia
acordado às 4h como sempre, pois não gostava de pegar fila para apanhar água. Eram
4 viagens (300 metros cada uma) com aquele balde de 20 litros na cabeça para
encher de água o pote grande que usávamos para beber e cozinhar. Outras 4
viagens para encher a tina com água da cacimba que ficava mais perto, mas que
tinha um percurso cheio de buracos e que dificultava equilibrar o balde na
cabeça, essa água era para tomar banhos. Eu terminava tudo por volta de seis da
manhã quando as demais pessoas começavam a carregar seus baldes d’água. Ficava livre
para subir no tamarineiro o mais alto que eu podia para ler ou desenhar meus
casarios. Se você observou, não houve café da manhã, nem haverá. O almoço seria
um punhado de farinha com feijão e caju. Eu não era feliz. Eu estava cansada de
ver os excessos do meu pai e a submissão da minha mãe. estava perto de sair de
casa, mas essa parte deixo para outro momento.
Por volta do meio da tarde,
alguém informou que um caminhão havia deixado um monte de comida estragada no
campinho de futebol que ficava no meio do mato. Minha mãe olhou-me com esperança
de que eu tivesse coragem. Medo não me havia sido apresentado. Vergonha? De quem?
Só estariam pobres famintos como eu lá...quem riria de quem?
E assim fui em busca, no coração
uma oração se fazia, “tomara que tenha alguma coisa que preste”. Quando vi a
torre de comida e a multidão de gente nas bordas pensei que seria impossível
conseguir pegar alguma coisa. Encontrei uma brecha e vi que poderia subir a
torre se não tivesse cerimônia em pisar frutas podres. Ignorei a gastura em
pisar mamões e fui ao topo. Lá onde as pessoas estavam com receio de chegar eu
a via: linda! Ela estava embalada, reluzia como ouro. Parecia nunca ter entrado
num caminhão de lixo. Todo o barulho da multidão faminta foi emudecido quando a
vi. Era a visão de um paraíso. Parecia que tudo mudaria a partir do momento que
eu e ela nos relacionássemos. Aquela peça de carne embalada, não esmagada, não
fedida, parecia um portal para uma vida outra. E ela não estava só. Ao lado
dela tinha também aquele enorme queijo com a bandeja de danone e vi a felicidade
do meu irmão de cinco anos quando olhei aquela guloseima. Peguei os três e os
abracei, eram meus melhores amigos. No caminho, já em segurança, longe dos
olhos que acompanharam minha alegria ao descer da torre de lixo olhei com
atenção a cara dos meus grandes amigos. Eram três kg de filé, 1 kg de queijo e
6 danones com validade de um mês atrás. Os primeiros números eram mais
importantes que os últimos. Minha mãe, uma sobrevivente da seca, resolveu fácil
a questão da carne e do queijo: “vou cozinhar e qualquer germe que tenha,
morrerá”. Já o danone a fez pensar um pouco e resolveu. Tomaríamos nós três o
danone, eu, ela e meu irmão. Assim se ele fizesse mal e matasse o caçula, mataria
a nós, afinal de contas, só tínhamos a nós três e se um ou uma fosse para o
andar de cima os/as demais também deveriam ir. Tomei o danone sem medo. Havia algo
em mim que dizia que eu comeria carne por três dias. E assim a carne vencida há
um mês foi o jantar daquela noite sem precedentes. Ríamos como se assistíssemos
na TV imaginária um futuro de mesa farta sem torre de lixo. Fazia tempo que eu
não via minha mãe sorrir. Fiquei feliz por ter sido corajosa e ter batalhado
pela carne no alto da torre. Minha mãe a dividiu para quatro refeições, salgando
a outra parte, já que geladeira fazia parte de outro planeta para nós. O queijo
fora cozido no feijão, e assado para acompanhar o café puro. Foram três dias de
paraíso. Eu ficava horas lembrando do momento em que encontrei aquela belezura
de carne e acreditava que ninguém me tiraria aquele prazer até que um dia,
rememorando o momento do meu encontro com aquela relíquia alimentícia lembrei
que ao longe havia um rapaz que olhava sorridente para minha astúcia em subir a
torre de lixo e encontrar os ouros comestíveis lá em cima – era um rapaz com
quem eu paquerava e alguns dias depois ao lembrar que o vira naquela situação
que antes não me envergonhou, agora me cobria com o véu do constrangimento. A fome
não me deixou vê-lo claramente. E somente alguns dias depois, ainda saboreando minha
coragem e torcendo para o caminhão voltar lembrei que meus olhos me protegeram
de viver algo pior que a barriga vazia que era a vergonha de ser uma
sobrevivente, era assumir uma culpa que não era minha, e sim do Estado, era constranger-me
por precisar comer a carne podre por que não havia nenhuma política social que
nos favorecesse, era sentir-me inapropriada para aquele rapaz que seria meu primeiro
namorado que se apaixonou por mim ao me ver ignorando sua presença em nome da
sobrevivência, mal sabia ele que não o vi de fato.
Dê, esse texto é uma porrada. Minha amiga, que orgulho de ti que, tendo vivido tudo isso, transforma tua dor em luta para devolver ao mundo a beleza e justiça que ele tanto te negou.
ResponderExcluirEita amiga, obrigada. Foi duro e ultimamente tenho lembrado demais desse momento. Obrigada por estar aqui nos últimos quatorze anos mostrando o lado bom da vida.
ResponderExcluirUm texto forte, intenso e corajoso, bem como vc... A vida tem mtas faces, nem sempre belas, alegra-me pensar q vc não se deixou levar (ficar) nessa tão atroz e partiu para ver as outras.
ResponderExcluirBem por aí, eu precisei reinventar faces...e foi dando certo. Esse fantasma, entretanto ainda me assombra.
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