A descoberta
Eu
estava pendurando as roupas no varal quando descobri. Separava-as nas cordas respeitando
sua categoria, cor, tempo de uso e, claro, a quem pertencia. Fazia isso de
forma automática, sem esforço algum e com muito prazer. Foi aí que me recobrei
parcialmente aquela memória: eu organizava as roupas no varal como havia feito
com natureza! Sim! Quando criei a natureza decidi que seguiria padrões: Fibonacci,
Benford, como depois os que os perceberam os nomearam. Não restava dúvida alguma:
Eu era deus!
Depois
que criei e dei o start no universo, fiquei um tempo curtindo o conjunto da
produção. Sabe como é, né?! Aquele orgulho gostoso de um trabalho bem feito.
Passei uns milhares de milênios lambendo minha cria. Depois, me entediei. Tudo
perde o viço quando olhamos demais. Não queria acabar com tudo e começar um
novo projeto, como já havia feito algumas centenas de vezes. Pensei que seria
divertido me colocar no lugar de criatura. Inventei um dispositivo para
suprimir minhas lembranças divinas e me travesti de um ser criado aleatório. Não
sei quantas vezes já fiz isso, pois um dos mecanismos do dispositivo de recalque
é a cada ‘morte’ enviar as experiências daquela vidinha para um arquivo
temporariamente escondido. Mas, a semelhança do processo de estender a roupa com
o de fazer o mundo foi muito grande e acabei tendo acesso ao dado central da minha
existência.
Foi
uma sensação nova, um reencontro com meu eu interior que, de fato, é também exterior.
Fiquei eufórico e acabei comentando em um jantar com amigos minha divindade. Os
presentes se entreolharam apreensivos. No contexto em que falávamos não cabia
interpretar minha afirmação como piada. Para quebrar o clima estranho que se
instalou, alguém desfez o silêncio iniciando uma dessas picuinhas futebolísticas
que existem em quase qualquer grupo de colegas no Brasil.
Foi
esse mesmo amigo que me ligou no dia seguinte se dizendo preocupado. Eu sabia
que ele tinha sido o escolhido para ser o representante da turma para averiguar
minha sanidade. Confesso que achei até simpático das criaturinhas fazerem aquilo.
Porém, ciente de ser quem sou, achei que não era válido sustentar uma mentira
só para agradar a limitação dos outros. Reafirmar
minha magnanimidade divina não foi, como era de se esperar, bem aceito pelos
companheiros. Com a intenção de acalmá-los, topei ir a um psiquiatra que eles
agendaram.
No
consultório, o médico fez uma série de perguntas que tinham como finalidade
testar minha coerência. Eu achei aquilo divertido. Em certo momento, ele quis,
ao que parece, me encurralar: Se você é deus, como poderia ser tão falho? Aqui
na sua ficha, vejo que tem miopia, teve pneumonia e que já até te receitaram
viagra ano passado. Achei um tanto ofensiva a tática de trazer à tona minhas
dificuldades sexuais, e devo ter sido usado um tom menos amistoso ao
responder-lhe: Querido, se deus pode tudo, que dificuldade teria em poder se
fazer um serzinho chinfrim que se degrada pelo simples passar do tempo? Ele,
ficou atônito e, por isso mesmo, não deu o braço a torcer. Encontrou várias
designações para minha ‘condição’ no seu sagrado manual e deu ao amigo que me aguardava
na sala de espera uma bula com a prescrição de três ou quatro drogas. Meu
amigo, esperançoso de que a conversa tivesse já dado algum resultado, me confrontou
sobre o diagnóstico: Será que se você fosse mesmo deus alguém poderia dizer
essas coisas sobre você? Eu sorri com complacência: Meu amado, se tem algo que
todo deus que se preze tem que ter são detratores.
Ahhhh perfeito!
ResponderExcluirMto bom! Fiquei imaginando o encontro desse deus com os de Saramago, taí uma conversa pra prestar...
ResponderExcluirHahaha...
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