Autoria, narrativas e o poder de tia Marybeth
Estava ele em mais um dia de chuva sentado à janela do
orfanato no qual morava desde os cinco anos. Sentia saudade de tomar banho de
chuva. Essa cena lhe veio à memória depois que Marybeth havia chegado ao seu
túmulo. Era assim que sentia aquele orfanato: um morredouro. Até pouco tempo
atrás não lembrava bem como havia chegado lá nem o porquê. Tia Marybeth havia
mudado sua vida. Depois que ela o estimulara a fazer um diário de sua história,
as noites ficaram melhores, passavam mais rápido e ele dormia a noite inteira.
Agora com onze anos à espera de que alguém o adotasse começa a parecer algo tão
distante que nem pensava mais nisso. Colocou no seu diário o quanto queria que
o tempo voasse para que atingisse uma idade em que pudesse trabalhar para sair
dali e poder tomar seus banhos de chuva e criar todos os bichinhos que
encontrasse na rua. Sofria por que ao lembrar de sua primeira noite no Orfanato-túmulo
recordava-se de ter deixado Calixto lá fora, numa noite fria de inverno. O cão
tinha sido seu parceiro nos últimos meses desde que seu pai havia assassinado
sua mãe e sumido. Ele ficou na casa de uma vizinha que lhe cedeu o chão junto
com Calixto. Não era culpa dela. Sua casa era pequena e cheia de gente. Ela foi
gentil e lhe deu uma colcha de retalhos para que ele se deitasse e Calixto o
acompanhou. Um dia, o marido da vizinha, picado pela mesma maldade de seu pai,
chegou bêbado e o expulsou de lá. O cachorro lhe acompanhou e ninguém se
importou. Algum tempo depois ele foi “recolhido” pelo orfanato que não tinha
lugar para Calixto. “Espero que fique bem, amigão”. Seu escudeiro teria
sobrevivido? Ele não saberia. No orfanato demorou muito a participar e se
sentir dentro mesmo do lugar. Até Marybeth chegar e lhe dar um caderno colorido
cheio de coisas legais que lhe inspirariam a contar sua narrativa. Foi bom e
ruim. Lembrou tanta coisa. Não queria lembrar. Jogou o caderno fora várias
vezes. Jogava fora, voltava pra cama e fechava o olho. Tentava rezar, mas não
lembrava mais as palavras, ela se foram junto com sua fé. Não queria lembrar
dos abusos, das surras e das vezes que ouviu sua mãe fazendo coisas que ela não
queria fazer. Chorava e sentia falta de alguém pra contar, buscava o caderno de
novo. Muitas páginas ficavam cheias de borrões das dores que escorriam ladeira
abaixo dos olhos. No dia seguinte tia Marybeth pedia para que falasse sobre o
que estava escrito. Outra tarefa difícil. Nem sempre queria, nem sempre
conseguia, mas ela sempre o acolhia. Um dia, ela lhe deu outro caderno. Esse
não era colorido. Estava todo branquinho. E ela lhe deu a missão mais difícil
que alguém já lhe pedira:
- Narre como será o dia mais feliz da sua vida e tudo que
você vai fazer até lá para que esse dia aconteça.
Antônio, a olhou com duas estrelas nos olhos por que falar de
felicidade era tão difícil, mas ele queria, queria muito. Ele queria sonhar.
Não via a hora de poder ficar com aquela nova vida, aquele caderno era
milagroso, tinha outro cheiro, ele poderia fazer algo que nunca haviam lhe
pedido: ser autor de algo que ainda não havia acontecido. O outro caderno era
bonito, mas o que se colocava ali não tinha mais borracha que apagasse. Esse,
sem desenhos, só com páginas em branco era como um mundo que ele poderia
construir as regras e brincar de ser rei. Opa: mas tia Marybeth disse que tinha
de contar como ele faria para chegar naquele final feliz que era só dele. Não
sabia por onde começar:
- Tia por onde começo? Pelo que quero alcançar ou por como
faço para alcançar?
- É sua história Antonio, você diz por onde começa.
Decidiu que sonharia primeiro. Deitou e ficou olhando para o
teto, caderno do lado como quem aguarda fazer sua parte, sua co-autoria em
agarrar as letras e segurar nas páginas. Na capa tinha ganho uma identidade:
Calixto.
- Tia, caderno pode ter nome? Perguntou sem saber se isso
fazia sentido.
- Ele é seu e você pode fazer dele o que você quiser.
Respondeu Marybeth, estimulando autoria como sempre.
Dormiu agarrado com Calixto sem escrever palavra nenhuma. No
dia seguinte procurou nos livros de recorte a cara de um cachorro parecida com
a do velho amigo. O caderno Calixto agora devidamente personificado estava
pronto para construir com ele sua história. Sonhou! Imaginou sua vida fora
dali. Queria uma casa com muito espaço para acolher todos os bichos da rua. Dormir
na chuva era muito ruim.
- Tia Marybeth, qual o nome da pessoa que cuida de bichos?
- Veterinário. Respondeu, Marybeth empolgada com o que aquela
pergunta poderia significar.
- Está bem, o que preciso pra ser esse daí?
- Você precisa fazer uma coisa muito bacana, conhecer bem o
corpo dos bichinhos por dentro e por fora para saber onde dói.
Maravilhado com essa profissão, Antônio desenhou seu sonho,
sua casa, seus bichinhos e colou pedrinhas pequenas e folhinhas retiradas do
jardim do orfanato construindo sua rua, o caminho que seria a chegada na
faculdade, com o mesmo material fez o caminho até sua casinha com vários canis
e lá bem em frente havia o desenho de um homem grande, maior que a porta da
casa sorrindo, sua cabeça quase tocava o poste.
Quando narrou seu sonho com o devido plano de execução para
tia Marybeth, ela perguntou curiosa:
- Quem é esse homem? E por que ele é quase do tamanho do
poste, Antônio?
- Esse homem sou eu, e estou do tamanho que você me sonhou,
tia.
Q lindeza! Ser o sonho do outro, pegar emprestado um "molde" q nem se sabia... Somos potências.
ResponderExcluirQue bonito, Dê. Não cheguei ainda no capítulo da dissertação que acredito ter inspirado a história. Mas eu sofri com Antônio e me alegrei de saber que Babita-Marybeth esteve ao seu lado. Uma história, um caderno e um sonho podem mudar tudo.
ResponderExcluirGente! Esse trabalho da Babita desorganizou meu juízo raivoso.
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