Coragem da gente tem a fundura de uma poça
Todo paradoxo da vida cabia naquela poça d’água. Seu olhar espelhado via as coisas que não enxergava, tudo o que era confuso, subitamente, organizou-se, só por aquele breve momento. Naquele instante, tinha absoluta consciência do belo e isso era um deslumbre. Todos os seus sentidos estavam ali e pode perceber a vida fluindo giroscopicamente.
Aquele deslindamento lhe encheu de coragem e determinação.
Saiu correndo para avisar ao primo, enquanto tudo era recente. Talvez uma pontinha de medo, de que fosse desistir, espiasse por uma fresta da coragem, então, apertou ainda mais o passo para ludibriá-lo.
Chegou ofegante, o coração saindo pela boca, o rosto vermelho igual tomate maduro e o suor escorrendo salgado da testa. “Eu vou”, cuspiu enquanto bufava, com uma mão apoiada no toco e a outra no joelho que ameaçava fraquejar. O primo olhou bem pra ele, medindo a decisão, pesando a coragem e assentiu: “meia-noite, na pedra da estradinha. Lembra de pegar a lanterna.”
O resto do dia passou oscilando entre a empolgação e a dor de barriga. Uma hora estava disperso e na outra irritado. “Deixa quieto que hoje ele tá nos cascos”, ouviu a mãe falar pra irmã. Na hora do lusco-fusco, aproveitou o pai no pé da escada que saia pro quintal e falou que ia caçar rã com o primo, se ele emprestava a lanterna grande. Emprestava. “Vão pros lados do brejinho ou do brejão?” Deu de ombro porque não queria mentir pro pai, receou falar a verdade e ele mudar de ideia. O pai, que lembrava da sua meninice, compreendeu e não insistiu. Que levasse a lanterna, mas cuidasse de não perder nem estragar. Agradeceu e saiu pra ajeitar as coisas.
No jantar, passou calado. Não sabia se tinha fome ou vontade de vomitar. Aquele embrulho no estômago era esquisito. A mãe insistiu que comesse, o pai falou pra larga-lo, que comer sem fome devia ser até pecado, se tivesse vontade comia depois.
Um estalo longe fez seu olho arregalado encontrar com o do pai. “É chuva, deve ser no boqueirão”. Se o pai estivesse certo, o plano ia por água abaixo, literalmente. Não sabia se ficava decepcionado ou aliviado. Outro estalido, pareceu mais perto. “Virgem Santíssima” benzeu-se a mãe, que morria de medo de trovão.
Olhou pro relógio na parede, ainda faltava. Se chovesse nem adiantava ir, o primo já tinha alertado. Fogo-fátuo não aparece com chuva. O pai olhou pela janela “os cachorros se abrigaram, de certo tem cheiro de chuva no vento. Vai que horas?” Olhou de novo para o relógio, “mais tarde, só.” “Sei não, se vai... Com garoa é até bom caçar rã, mas com chuvão não pega nenhuma. Até bicho molhado se incomoda quando é muita, a água que cai do céu.” Ficou calado. Queria ver o fogo-fátuo no brejo, mas morria de medo de assombração. Onde estava com a cabeça de combinar uma asneira dessa?!
O tempo corria, a chuva não decidia, seu medo crescia, a coragem diminuía... Estava era danado! O pai falou como que por acaso, “uma vez, de menino, fui com seu tio caçar rã. Naquele tempo o brejo era um só, emendado. Seu avô foi junto. A gente já tinha enchido um cesto quando seu tio se afastou para mijar, daí a pouco ouvimos um barulho esquisito e seu tio correndo com as calças arreadas, branco que nem cera, gaguejando, desesperado!” Dividido entre a curiosidade de saber o fim da história e o medo, ficou calado e não se mexeu, achou que a perna estava meio bamba e pensou na vergonha. “Viu a mula-sem-cabeça ou foi outra assombração?” A mãe perguntou com um pouco de desdém, para parecer coragem, e um tanto de medo mal disfarçado. “Disse ele que sim... A gente ouviu um barulho esquisito mesmo, mas não vimos nada. O pai até andou pro lado que ele tinha ido, mas não achou nadinha. Só depois de homem feito é que seu tio voltou a caçar rã, mas, ainda assim, num é das coisas que faça por iniciativa própria, não. Ele disse que viu um fogo azulado se movendo no brejo. O seu avô falava que era o tal do fogo-fátuo, assombração não era, que fogo de assombração é avermelhado, mas o que era de fato não sabia explicar. Eu mesmo, nunca vi nada, de modo que ficou o dito pelo desconfiado e nem deu pra rir do seu tio correndo pelado.”
Nisso, a mãe já tinha se benzido umas três vezes. Ele estava igual a maria-mole passada no coco seco, que tinha na venda, pelo menos, era assim que se sentia. E a chuva, enfim, despencou com vontade. Aquele gosto estranho na boca seria de aperreio ou frouxidão? Respirou fundo enquanto devolvia a lanterna pro pai e se apressava para a cama.
Já deitado, se deu conta que no outro dia as poças estariam renovadas com aquele chuvão, faria uma canoinha de bambu para brincar com a irmã. É, a chuva atrapalhou um pouco sua coragem, ainda bem.
Oh Rapha, fui longe agora. Eu fazia canoinha de papelão pra brincar nas poças, e fazia de conta que eu estava fugindo para um outro lugar...lindo demais.
ResponderExcluirAh, essa coragem frágil... Tão eu!
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