Entre doces, salgados e sonhos

O ano é 2021, março, vivemos uma era de ódio e descaso com a vida de nosses semelhantes, meio a uma política de morte e a uma pandemia. São 12horas, sol escaldante na capital do Ceará, para alguns a vida segue seu curso anormalmente como sempre fora. Para as mulheres sempre foi assim: ser mãe é uma responsabilidade sua – abriu as pernas, se vire! Não aborte, por que a vida que está em seu empobrecido ventre não pediu pra você sair por aí fazendo aquilo que Deus não autoriza – crescei e multiplicai é pra quem pode – isso não lhe fora dito? Que pena garota. Agora pene. Carregue seu bucho e seja uma boa mãe! O que é ser uma boa Mãe? Você precisará educar essa criança para ser gente. E o que é ser gente? Em nossa nação inventada Brasil, ser gente é ter o direito a um emprego, educação, saúde e moradia. Como poderei fazer desse menino gente se eu mesma não o sou? Vire-se: abriu as pernas, agora resolva. Eu só tinha 12 anos quando aconteceu. Pior ainda. Onde estava sua mãe que não impediu uma coisa dessas? Agora cuide do seu filho, faça por ele o que sua mãe não fez por você. Não a educou direito. Onde já se viu, uma criança de 12 anos fazer sexo.

As vozes que ecoavam na cabeça de Angelina diziam tudo que ela deveria fazer dali em diante: seja uma boa mãe, preserve-se, cuide de seu filho, faça dele gente. As pessoas só não lhe diziam como. Como ela faria isso? Pouco importava para seus inquisidores como ela faria. O que contava mesmo era que ela não deveria colocar uma nova semente no mundo que precisasse do Estado para ajudá-la. Era tudo responsabilidade dela. Em nenhum momento lhe perguntaram quem era o pai, para que ela dissesse que era o patrão que a violentou numa noite qualquer. Culpabilizaram sua mãe, mas esta já havia morrido fazia tempo, antes a deixou na casa de uma prima para que terminassem de cria-la. Foi nessa mesma residência que se tornou empregada doméstica e conheceu aquele inominável que seria o pai de seu filho que negaria a paternidade tão logo ela dissesse que ele a havia violado. Não, não se pergunta pelos pais que abortam os bebês. Não se pergunta. O pai de Angelina ela não conheceu, assim como seu filho não conhecerá o dele também. Grávida e sozinha ela teve de decidir aos 12 anos o que fazer com o rebento. E com 4 mudas de roupa na mala e nada para comer, decidiu que só tinha a ele na vida. Queria uma companhia. Encontrou outro emprego de doméstica e com essa nova patroa conseguiu algumas roupinhas para o bebê – as amigas ricas da patroa precisavam praticar o desapego, foi o que ela ouviu a patroinha dizer. Não entendia de desapego, nunca teve ao que se desapegar. Agora entendia de apego. João viria ao mundo e ele era seu, só seu. D. Patroinha lhe avisara que não a queria faltando com a desculpa do bebê. Ela iria precisar de uma creche. Ele foi, João, sem muito choro, para a creche tão logo nasceu, não deu tempo desmamar. D. Patroinha não poderia esperar seis meses. Angelina agora madura com 13 anos poderia tomar a decisão de continuar trabalhando e ver o filho só de noite, ou coloca-lo para adoção. Sua escolha, e tão só sua escolha fora de não se separar de João. Nada poderia ser mais difícil do que havia vivido na casa da prima patroa. Enganava-se. Como pode? Com 13 anos tomar decisões tão equivocadas? Essa criança branca (herdou do pai para alívio de Angelina) poderia conseguir uma boa família para ela. Mas uma boa mãe não abandona os filhos, pensava maduramente Angelina. João crescera na creche e de noite podia desfrutar do amor de sua mãe. Angelina o trancava no quartinho de empregada à noite e às vezes o sufocava para ele não chorar e não incomodar os bondosos patrões. João ousou fugir do quarto de empregadas num domingo qualquer e correr para a piscina onde as crianças filhas das boas mães tomavam banho. Sua branquitude e loirice chamaram a atenção do público que agora curiosa e fofoqueira, cogitava se João não era filho do patrão. Ele era, mas não desse, do outro. Esse também louro e branco irritou-se com a possibilidade de pensarem que ele havia se misturado com a empregada pretinha exigiu a saída daqueles dois da sua casa imediatamente. João lamentou-se por sua peraltice pedindo desculpas à mãe desolada que arrumava mais uma vez sua mala com algumas roupas. Juntos seguiram com o resto de salário que D. Patroinha lhe dera de muito bom grado por que era uma boa mulher, segundo os olhos de Angelina. Na primeira noite, foram para uma pousada de posto de gasolina. A madura mulher de 17 anos passou a noite acordada com medo que alguém arrombasse a porta de seu quarto e seu filho visse o que nenhuma criança deveria ver. No dia seguinte, já no posto mesmo ofereceu-se para trabalhar. Conseguiu o emprego de faxineira e João agora na escola integral seguia passando o dia longe da mãe. O Dono do posto lhe deixava ficar num quartinho com João. Angelina estava feliz, mas algo lhe corroía por dentro. Um dia, antes de morrer, sua mãe lhe perguntou: o que você quer ser quando crescer. A criança de onze anos que ainda não era a pessoa madura de 12 anos que teria de ser boa mãe, respondeu: quero ser médica. Sua mãe, audaciosa que só ela, lhe exigiu uma promessa: “nunca desista, prometa”. Se não fosse sua meninice talvez tivesse tomado a decisão correta de não prometer. Mas prometeu e agora sentiu todas as suas forças se movendo para investir nesse sonho. O que quer uma mãe, solo, preta tentando faculdade de medicina? Quem você pensa que é garota? Pessoas se esforçam a vida inteira, pagam colégios caríssimos para conseguir fazer uma faculdade de medicina e você quer uma vaga assim? Vendendo doces na rua? Tome tento! De onde acha que vem e pra onde pensa que vai com essa bazófia? Angelina ainda tem crises de imaturidade e segue fugindo aos conselhos da hipócrita sociedade que insiste em lhe dizer qual é o seu lugar.

 

 

Comentários

  1. Ser gente, fazer gente. Fazer-se gente... Umas coisas difíceis assim e lá estamos nós, sendo e fazendo todo instante.

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  2. Amiga, há muita força em sua personagem, mas, confesso que o gosto que ficou foi de uma tristeza amarga.

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