Memórias da infância: a perda da linguagem
Quando
criança eu sabia falar a língua do mundo. Conversava com os objetos, os
animais, os elementos naturais. Criava código de comunicação e, com eles, entendia
o que o mar me dizia. Ou então, lia os olhares dos cachorros, seus silêncios e
seus movimentos. Eu era fluente. E todas as coisas eram plenas de muitas cores
e muita vida.
Tenho
na lembrança traços borrados de saber essa linguagem. Não recordo os conteúdos
das conversas. Atravessa-me, eventualmente, uma imagem no quintal, no jardim de
inverno da casa onde vivi, na praia do futuro ou com um dos meus amigos
caninos. Sei que, nessas cenas, falávamos. Eles em silêncio e eu em pensamento.
Não
sei quando perdi meu vocabulário universal. É possível que o processo de
crescer tenha me feito empurrar para o fundo de mim minha imensa habilidade de
conectar-me com o que me rodeava. Parte de mim queria adultecer. Ser grande
significava reconhecer as coisas como coisas. Aceitar a exclusividade humana como
ser de comunicação avançada. Embora não avançada o suficiente para ultrapassar
as barreiras das espécies.
Hoje,
suspeito que, perder essa linguagem ampla teve a ver com descrer da magia que é
o mundo. A descrença infiltrando-se nos meus ossos, nublando minha vista para
outras possibilidades de me misturar com o que havia ‘fora’ de mim.
Não
se trata de um processo sentido como trágico. Crescer trouxe suas novidades. Se
há peso na descrição acima, é porque a mulher adulta sente saudades do colorido
leve que o mundo já teve. Sinto falta do conforto certeiro que meus amigos
imaginários (?) me traziam, espantando o medo que também era presente na
infância. Meus amigos imaginários não eram pessoas. Eram as cores ‘personificadas’.
Lembro deles não como meus parceiros de brincadeira, mas como meus protetores.
Seriam
meus amigos espíritos? Seriam uma projeção do inconsciente? A verdade, é que
essas são perguntas não faziam o menor sentido à época. Importava apenas que
eram amigos e que estar com eles era bom. As questões adultas parecem sempre
dar muita relevância ao nome que os fenômenos têm. Enredam-se aí e, em geral,
perdem os fenômenos que acham observar. É bem provável que eu tenha me embaraçados
nesses fios intermináveis de categorização e, uma vez aprendido que meus amigos
e minha linguagem não faziam jus ao rótulo socialmente aceitável de real, tenha
aberto mão deles. Há lugares que cobram caro seu ingresso, mas que estamos tão
ansiosas por entrar que pagamos o que nos demandarem.
O primeiro sintoma que eu cresci foi sentir vergonha da minha visão caleidoscópica da vida e da minha capacidade de dialogar com amplitude. Mesmo adulta, não é sem algum receio que se coloca isso em um papel. Crescer parece ter implicado, para mim, em ir enrijecendo minhas descrenças. E, com a licença dos jogos de palavras, creio que descrer das coisas é mais difícil de ser revertido do que crer em algo. Descrer tem semelhança com petrificar as sensações. Como se, de tanto colocar o pé atrás, a gente se distanciasse excessivamente do que queremos ver. Longe, as figuras embaçam, o toque se inviabiliza, os cheiros se desafazem, os sabores esmaecem e os sons são carregados pelo vendaval.
É ainda soterrada por pedras de descrença que rememoro o tempo em que sabia falar fluentemente. Falar sem palavras. E ouvir sem palavras. Enquanto escrevo, uma breve esperança de que a menina mora ainda aqui me preenche. Quem sabe, ela é forte e escapa do desabamento a que a submeti?! Não sei, não sei, diz a adulta calejada. Descrer é mais duradouro do que crer.
Quem é a menina da foto? Acabo de dar o rosto para a menina do barquinho que ainda vive com seu vocabulário universal coletado em suas travessias.
ResponderExcluirSou eu mesma, Dê! O barquinho que você me deu me ajuda a lembrar essas outras linguagens.😘
ExcluirRitinha eu te reconheci, mas como te achei "vermelha" demais, fiquei na dúvida. As fotos antigas tinham um tom avermelhado né? A dona do barquinho e da mãozinha tem rosto agora.
ResponderExcluirTinha mesmo! Mas, eu era moreninha nessa época. Fui desbotando na medida que envelhecia 😒🙄
ExcluirAcho q desbotou na medida em q parava de sair ao quintal, correr pro mar, brincar na areia. Virou bicho de dentro de casa, ao invés de bicho de fora...
ExcluirTia, na verdade desbotei de para ir pra praia todo sábado como rezava o ritual do seu Bira 😂
ExcluirTaí um ritual q me apraz... 🤣🤣🤣
ExcluirDescrer parece-me um longo caminho, cujo retorno não avisto. Qto à fluência, certeza q é só questão de desempoeirar e treinar de novo o ouvido, falar é natural, então.
ResponderExcluir