O pavio que acende a clareza
Gostava de acender uma vela à noite, a luz bruxuleante, dançando pelo quarto escuro, era bonita e dissipava a tensão do dia. Aos poucos seus pensamentos se dispersavam e ela sentia a tranquilidade envolvê-la. Quando sentia que até o dedo mindinho estava relaxado apagava o pavio com um sopro gentil. Queria pensar que também se apagaria, com suavidade, no breu da noite. Com sorte, dormiria solta e leve.
O torpor já nublava suas sensações e o pensamento batia à porta do mundo onírico, quando a chuva deu uma apertada. De pequena adorava dormir com aquele barulhinho, a cantilena da água embalava seu sono e ela achava ainda mais aconchegante o travesseiro, a coberta puxada sobre a orelha. Porém, de uns tempos pra cá, passou a detestar. Era a chuva ganhar ritmo que a vontade de fazer xixi surgia. Das primeiras vezes achou que era impressão sua, coincidência, depois viu que não. Aquele som de cachoeira e ela se sentia a própria, desaguando infinitamente até quando não tinha o que desaguar.
Como podia ser, uma coisa tão boa mudar assim?! Sem perceber começou a listar essas coisas: o quebra-queixo que já não comia, por medo de quebrar o dente. O salto que aboliu, pela dor no quadril. As festas, noite a dentro, porque a deixavam imprestável por uns dois dias. O café puro que lhe dava queimação. Já era a terceira vez que se levantava para ir ao banheiro, a chuva não dava trégua.
Cogitou acender a vela outra vez, mas não estava no clima. Estava cansada, com sono, irritada. Estava envelhecendo, mas sua bexiga a superava na velocidade. Lembrou da época em que não conseguia fazer xixi fora de casa, das várias infecções, até que a mãe descobriu e lhe ensinou o truque da torneira, abria a torneira e, mesmo sem sentar no vaso sanitário, era imediato. Agora, essa torneira que não podia fechar, a estava exasperando!
Na quinta vez que precisou levantar, desistiu. Já estava com vontade de chorar, na verdade, desde a quarta vez, que estava controlando o choro, era ridículo uma mulher na sua idade chorar porque tinha sono e não conseguia controlar a bexiga voluntariosa. Era ridículo... Ridículo! Descontrolou-se. Soluçava sentada no chão do banheiro. Pensou que envelhecer era um descontrole seguido e se rendeu.
Esses ridículos que nos igualam, assim como o envelhecer e o descontrole. Que triste perder o sono bom que vem com a chuva
ResponderExcluirNossa humanidade na devida proporção de grandeza nenhuma.
ExcluirNossa! A cara da minha tese de doutorado onde o dinheiro se apresenta como algo que minimiza tudo isso.
ResponderExcluir