Agora estava ali
Não acordou de sonhos intranquilos, como Gregor Samsa. Ao contrário, dormira pesado, um sono pétreo e sem sonhos, nada restaurador ou confortante, apenas fechara os olhos e os abrira algum tempo impreciso, depois. Isso quando ainda era manhã. Não tinha certeza da hora agora, mas a tarde ia pelo meio, talvez um tanto mais.
Há dias seguia assim, numa espécie de torpor da realidade, um sonambulismo atípico e controverso. Àquela hora a cidade tinha uma cor engraçada, um tom meio amarronzado, mas que não tendia ao dourado. Tinha, também, um som próprio, uma mistura de gente falando alto e coisas batendo, como se fosse algum fim de feira. Só o cheiro não mudava. Um cheiro quente de podre, como esgoto aberto. Não era incomum que andasse pela cidade, mas a essa hora era novidade.
Demitira-se.
Foi a segunda coisa que fizera, depois de bater o cartão de ponto. Sem explicação ou justificativa, apenas pediu as contas, esperou para assinar os papéis, a burocracia de praxe, e saiu pelo mesmo portão que entrou. Não, não foi uma atitude impensada. Há dias remoía a decisão, uma ruminação demorada. E quando, na noite anterior, tomou a decisão, tomou várias outras coisas junto: um banho, um sermão dela, duas doses de uísque e um susto.
Pela primeira vez, em um longuíssimo tempo, sentiu-se bem, e esse era o susto. Sairia flutuando na sala? Nem quis abrir a porta da sacada, nenhuma janela, contentou-se com a voz de Billie Holiday nos fones, abafando qualquer outro ruído, qualquer outra coisa, inclusive seus pensamentos agitados.
Agora estava ali, encantado com a cidade, como se a visse pela primeira vez. Caminhando sem pressa pelo calçadão da praça, reparou no coreto, na igreja modesta e na amendoeira, do outro lado da rua. Brincava aí aos domingos, depois da missa. Foi aí, também, que beijou a primeira menina, atrás dessa amendoeira. Uma nostalgia de si... Pensou que alguns lugares paravam no tempo, ou seria ele que os fixava aí? Não sabia, não com certeza.
“Não se separe de si, não se perca de vista”, disseram-lhe uma vez.
Não era Buendía, tampouco tinha um pelotão de fuzilamento diante de si, ou a recordação do pai o levando para conhecer o gelo. No entanto, em seu peito, a ansiedade do reencontro consigo, impingiu-lhe uma serenidade insuspeita e sólida.
Não se separar de si, às vezes é tarefa difícil. Feliz pelo reencontro dele!
ResponderExcluirNão se separe de si mexeu com meus brios. Obrigada, Rapha.
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