Ela ou ela mesma

 

Saiu da faculdade naquele fim de tarde com a decisão tomada. Olhou pela ultima vez o rosto dos colegas. Fitou o professor de Fisiologia que tanto a fazia desejar sexo por uma noite com ele, mas nunca a viu de fato e pensou: “vai se arrepender de ter me dispensado tantas vezes”. Passou pela cantina, pelos vigilantes, pelas placas das turmas formadas e os viu a todos como meros jarros sem flores. Não havia ali algo que a fizesse sentir fazendo parte. Por que escolhera Medicina? Fazia-se essa pergunta e só lembrava do fato do pai ser um cardiologista famoso, a mãe ser uma pediatra com a agenda lotada e indicada por toda a sociedade. Lembrava-se de avós, primas, e uma enorme parentela que havia enveredado por este caminho. Não, ele não seria seu percurso. Qual seria então? Pela enésima vez se perguntava isso e estava cansada de não ter resposta para essa pergunta que a atormentava todo dia.  Passou pelo porteiro e seu filho que lhe deram boa tarde, ao que ela respondeu:

- Quem se importa.

Enquanto caminhava rumo a qualquer lugar o motorista do carro de seu pai a acompanhava buzinando e questionando para onde iria a pé. Desatenta entrou no carro e olhou o pôr do sol pela última vez. “Como será que ele estará amanhã? Brilhará do mesmo jeito quando eu não mais estiver aqui?“  Idiota! Pensou. “Por que o sol deixaria de brilhar? Só por que uma mimadinha cansou de sua vidinha sem novidades?” Estava tudo acertado. Os comprimidos, a hora da solidão em casa, pais de plantão, empregados ocupados. Amigos que ligam insistentemente não tinha, então ninguém atrapalharia. E como seria depois? Disso não sabia e isso a excitava. Não ter certeza de como seria. Aquela vidinha cheia de certezas era tão cansativa. Não acreditava em céu ou inferno o que a deixava calma com relação à retaliação vinda seja lá de onde fosse. Tudo se deu como o planejado. Cartinhas escritas para mamãe, papai, irmã. Deveria deixar para o professor? Não. Ele a havia ignorado. Para a turma? Alguns a viam só como mais uma, outros se quer a enxergavam. Para quem deixaria? Chega, somente para os três mais próximos que sabia que sofreriam, mas estava cansada de sofrer para fazê-los felizes. Remédios tomados, roupa colocada, porta fechada, luzes apagadas. Amanhã seria um novo dia.

O galo cantando foi estranho. Aqueles cheiros de café e ovo eram novos.  A mansão em que morava era tão grande que normalmente o cheiro do café não chegava no seu quarto. Naquela manhã ensolarada parecia que a cozinha era do outro lado da porta. Esticou-se e lembrou: O quê? Não aconteceu nada? Que organismo dos diabos! Não senti nenhuma dor de cabeça!? Quando se virou para levantar caiu do beliche e enquanto tentava entender o que estava acontecendo viu sua irmã acordar assustada na cama de baixo e perguntar:

- Tá doida?

 Olhou para o quarto e percebeu o quão minúsculo ele era. Não havia um guarda roupa, mas uma cômoda apoiada em tijolos. O chão era de terra batida.

- Ok, morri e isso é o inferno?!

 Por que sua irmã estaria ali, então? Antes de compreender o que estava acontecendo, ouviu a voz de sua mãe:

 - Meninas, café na mesa, venham logo antes que esfrie, a garrafa está quebrada e não mantem mais aquecido.

Atônita saiu do quarto e deu de cara com a cozinha e sala ao mesmo tempo. Uma mãe que não era a sua, apesar do corpo ser igual ao da elegante, distante, e ocupada pediatra, a mulher olha pra ela com afeto e diz:

- Não vai pra faculdade hoje, meu amor?

Vacilante, com medo de ser descoberta como impostora respondeu:

- Vou mais tarde um pouco, mas cadê o papai?”

Engasgou-se com o café com a resposta da mãe:

- Saiu para procurar emprego, não se cansa de bater nas portas.

Dito isso, a mulher animada, e motivada complementa:

- Hoje estarei fazendo faxina na casa de Dona Adelaide, se precisarem de mim, liguem para o telefone dela por que o meu deu problema. O que era aquilo? Nada fazia sentido. Havia tomado comprimidos mortais e não de transferência de vida. Voltou para aquilo que chamavam de quarto e escolheu a melhor roupa entre as que achava menos feias. Saiu para a faculdade e lhe ocorreu: será que ainda era a mesma? Como saber? Foi passeando pelos corredores da universidade esperando ser reconhecida por alguém e lá estava seu salvador, um garoto negro que ela nunca havia visto lhe olhava com um grande sorriso. Devolveu a simpatia e sentou-se ao lado dele olhando os livros do jovem para detectar de que curso ele era. Respirou fundo quando o viu com um livro de Biologia molecular. Ufa, ainda era estudante de Medicina. Ao sentir esse alívio, pensou: “por que fiquei feliz? Se ontem tudo que eu queria era não estar aqui?” Antes de se responder o rapaz perguntou:

- Faltou ao nosso encontro ontem à noite por que? O grupo de estudos não anda sem você. Estarrecida com o compromisso que havia perdido, mas sequer tinha conhecimento, respondeu:

- Por que não anda sem mim? O rapaz animado e visivelmente encantado disse:

- Você é nosso gênio, e não damos conta de Anatomia sem você, passou em veterinária para nos salvar. Medicina veterinária! Isso não estava acontecendo.

- Quem é o “nos”’? Seu mais novo amigo que parecia ser de infância responde:

- Nós, os pobres que vem das escolas públicas. Só você pra nos ajudar, não conseguimos acompanhar a turma, você sabe...os professores não ligam para o desnível. Ei, o que aconteceu com você? Estou repetindo tudo que você vive reclamando.

- Eu vivo reclamando de quê?

- Do quanto não somos vistos, acolhidos e tal...o que houve com você, amor?

- A a amor?

- Vem cá, você está precisando de um beijo pra organizar as ideias. E seguido dessas palavras veio um longo beijo que ela não sabia como dizer não por que parecia algo com o que estava acostumada e que amava.

- Hora da aula! Deixem para namorar depois. Falou o professor “gostosão” mas que agora não parecia nada sensual.

Sentou naquela que deveria ser sua cadeira, viu-se cercada de pessoas que lhe riam, e trocavam ideias. Observou que havia na sala uma nítida divisão de classes e reconheceu em alguns olhares, o mesmo vazio que sentia até o dia anterior. No intervalo marcou grupo de estudos, viu o quanto tinha para estudar, percebeu-se com fome e sem dinheiro e enxergou a dona da cantina que era bem parecida com sua mãe. Torceu para a aula acabar: “Seria o almoço tão saboroso quanto o café?” Pensou.

- Mãe? Pai? Cheguei. Silêncio na casa, ninguém por perto. Um bilhetinho na geladeira.

- Filha, seu pai vai comer na rua, sua irmã vem almoçar comigo na Dona Adelaide, tem macarrão e carne moída no congelador. Até de noite. Mamãe te ama. De alguma forma aquele bilhete foi tão acolhedor. Esquentou o macarrão e o saboreou sozinha e confusa. Quanto tempo duraria essa morte? Morrer era assim? Viver outra vida? Havia tanto para lutar. Sentia falta de tanta coisa. Não queria ser veterinária. Por que será que fez essa escolha? Terminou de comer e se viu lavando o próprio prato e pensou: “quando aprendi a fazer isso?”. Pensou na outra vida. Queria ela de volta? Havia coisas que queria resgatar, mas essa vida tão difícil, tinha algo que não sabia explicar. Perdida em pensamentos voltou para a faculdade, mais um ônibus, cheiros ruins, cheiros de comidas, crianças pedindo coisas, adultos esgotados. Chegou atrasada. Pediu licença e entrou constrangida pelo atraso. Mais aulas, mais cobranças, mais ideias, grupos de estudos, risos, desesperos com a prova da semana que vem. Professor antipático com quem ela bateu de frente e ao final da aula fora aplaudida pelos colegas. “Há tanto pelo que lutar” essa frase não saía de sua cabeça.

Ansiosa para chegar em casa e “conhecer” seu pai saiu apressada para não perder o ônibus. Lá estava ele, esgotado, rosto queimado de tanto andar no sol. Ao vê-la o rosto dele se iluminou em um sorriso. Abraçou-a e pediu que lhe contasse como fora seu dia. Ela narrou com detalhes e empolgação o que o levou a lhe fazer uma pergunta:

- Vejo que você está tão animada na veterinária, não quer mais transferir para medicina?

- Eu queria?

- Bom, você teve medo da concorrência e escolheu um curso próximo, mas queria mesmo ser médica para ir para a unidade sem fronteiras, lembra? Seu lema era ; “Há tanto pelo que lutar”. Esqueceu de tudo isso?

- Não sei, de repente acho que sim.

- Cuidado filha, não se perca de você. Bom, vou dormir, amanhã tenho um bico pra fazer, tenho muito pelo que lutar. O cansado homem riu, e seguiu para o quartinho ao lado do dela.

Brincou com a irmã mais nova, ajudou a mãe nos afazeres de casa. “Descobriu” que tinha um gato, o Peteca. E foi dormir. Estava com medo. Não queria perder tudo o que havia conquistado. O que era mesmo? Havia se conquistado. E se amanhã acordasse num mundo onde a comida não cheirava por que estava distante, e o amor não chegava por que estava longe demais no mundo do trabalho, onde o dinheiro era o bastante para não se precisar de mais nada? Por favor, Deus, se você existe, não me deixe acordar lá. Não foi atendida em suas preces. Acordou num hospital com a família ao seu redor. Quem havia estragado seus planos? Fraca, perguntou para a irmã: como me encontraram?

- O Jair, filho do porteiro, aquele que estuda com você, disse que sentiu nas suas palavras que havia algo errado. Foi lá em casa de noite com o pretexto de tirar uma dúvida com você sobre Anatomia e os empregados bateram na sua porta até perceberem que precisavam arromba-la. Por pouco não foi tarde demais. O Jair está aí fora, esteve todos esses dias ao seu lado. Quer que chame? Ainda sem entender tudo aquilo, pediu que o moço entrasse e quis ficar só com ele. Não lembrava dele.

- Bom dia! Disse o moço negro de beijo delicioso que ela conhecia de uma outra dimensão.

- Bom dia! Por que me seguiu? Por que me salvou? Nós nos conhecemos?

- Você não lembra, mas no primeiro dia de aula, eu pensava em desistir da Medicina por que achava que não era para mim: aquele lugar, aquelas pessoas, eu não me sentia fazendo parte dali.  E você disse na nossa aula inaugural que havia escolhido esse curso por que há muito pelo que lutar. No decorrer dos semestres você se apagou e me vi na obrigação de devolver a gentileza de ser luz pra você. Segurou forte a mão do novo amigo e agradecida, viu que poderia estar naquela vida sem o cheiro do café e o afeto fácil vindo da família, que poderia lidar com a distância dos pais, desde que não se perdesse de si, desde que lutasse pelo que acreditava.

 

 

Comentários

  1. Gostei muito, Dê. E, em certo momento, senti teu texto como uma produção inspirada na última publicação da Rapha no blog. Faz sentido?

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  2. Sim, o texto da Rapha junto com outro que estou lendo da Conceição Evaristo geraram a máxima da história.

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  3. Primeiro dizer q me achei agora: eu e Conceição Evaristo na mesma frase! Rsrs
    Depois q achei o texto massa, acho q tem um texto da Ritinha com uma pegada assim tb, né? A mulher q acorda em outra vida. Ou tô doida?

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  4. Verdade, Rapha....vc e Conceição Evaristo arrasando meu juízo. E sim, agora lembrei de um texto da Ritinha nessa vibe também, mas na hora não me veio, pelo menos não conscientemente. Esse texto também teve a ver com a série The man in the high castle. Lamento muito sobre quem o Smith era e quem poderia ter sido. Essa parada de termos várias possibilidades e escolhermos uma e o porquê de fazermos isso é bem intrigante para mim.

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  5. Encontrar sentido em si e no outro, tanto pelo que lutar...a gente decide viver. Obrigada, Jequitibá

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