Goteiras

 

Choveu dentro de seu quarto.  Levantou-se para resolver o problema com a velocidade que ele exigia. Empurrou a cama. Enviesou o criado mudo. Posicionou o balde embaixo da goteira. Sentiu vontade de chorar imitando o teto que desaguava em seu colchão.

A cada pingo que minava, ela pensava que até as paredes tinham o direito de lamentar. Ela não tinha. Não naquele cenário. Naquele mundo que ruía rapidamente. Pessoas morrendo sozinhas. Crianças que perdiam os familiares antes mesmos de aprenderem seus nomes. Fome. Miséria intelectual. Não. Era insensível chorar por causa da goteira.

Pensar isso aumentou sua angústia. Sua moralidade conflitava com o direito de doer-se por pequenos estragos. Seu privilégio pesava a cabeça a ponto de lhe machucar o pescoço. Entrou no banho para lavar sua culpa de ser afortunada. Não se pode praguejar quando o assunto é ter tido sorte.

Leu um punhado de notícias já com a cara meio enfiada no travesseiro. Não havia escapatória: a morte e a ignorância festejavam em toda parte. Imaginou que talvez sua vontade de chorar não tivesse nada a ver com a chuva entrando sem convite na sua casa. Quem sabe era empatia? O sintoma de uma contaminação com a infelicidade que se adensava e, sendo tão imensa, convocava todo e qualquer um que ainda ousasse viver.

Não se deu conta quando adormeceu. Sonhou imagens turvas, palavras desordenadas. Um desfile sem personagens ou história.

Quando o sol incomodou seu olho, acordou preenchida de suas próprias tragédias. O primeiro beijo de amor na contramão. Os crimes de que havia sido vítima. As coisas apagadas da sua memória, das quais só restava o traço do insuportável.

A espuma na escova de dentes misturou a tristeza de seus momentos de desamor – toda tristeza lhe parecia uma face da falta de amor – com as alegrias atuais e passadas. Por uma fração de segundos, achou que a vida fosse ela parada na esquina entre o amor e as mortes.

Lavava o rosto quando o filho entrou no banheiro e a abraçou dizendo “bom dia”. No ralo da pia, suas lágrimas confundiram-se com a água.


Comentários

  1. É o choro pela goteira q tb nos humaniza, nem toda tristeza é falta de amor e dor, bem, a dor é inevitável (bom é qdo um abraço acolhe)...

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    1. Que possamos sempre encontrar abraços para acolher nossas dores.

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