Guerra

 

Era uma guerra milenar. Eu, como tantos outros e outras antes e agora, era mais uma nas trincheiras. Diariamente, a matança, o emprego preciso da força, o zunido contínuo de saber ter as mãos sujas de sangue. Não lembro de um tempo em que eu não fosse soldada nesse conflito. A meninice não escusou que eu me tornasse assassina. Foi assim com todos nós!

Com alguma frequência, me pergunto sobre a justiça disso tudo. Sobre a desproporção de poderio. E, ainda assim, com a resistência daquela população ao longo dos séculos. Não raro, culpo a estruturação do mundo. Só ela deve ser a real responsável desse embate infinito no qual sou apenas peã.

Não, não nego que também há dias em que adentro o campo de batalha com ganas de exterminar com crueldade aquele povo inimigo. Esqueço suas razões. Apago que, como eu, cada oponente tem família e filhos a criar. Do lado de lá, acho que essas noções sequer se colocam. Não sei ao certo, claro - não há comunicação com antagonistas – contudo, suspeito que lutam por sua vida e pronto. Uma lei natural que os impulsiona ao ataque que é também defesa. Após o primeiro movimento belicoso, não há distinção entre ação e reação. Somos todos atirados a nossos próprios incômodos. A guerra existe porque não suportamos a dor. Mesmo as pequenas, se nossas, agigantam-se.

O combate é incessante, me engajo nele desde a manhã e, há dias, em que nem durmo. A querela não respeita os ponteiros do relógio. Não há feriados ou dias santos. Você pode pensar que exagero. Gostaria de dar-lhe a satisfação de estar correto. Infelizmente, a disputa acontece onde quer que eu vá. Minha casa e qualquer um de seus cômodos é manchado de morte. Em uma guerra como essa não existem abrigos duradouros.

Sigo alerta a qualquer sinal de proximidade. Os opositores escondem-se com maestria. Eventualmente, parecem possuir a dom da invisibilidade. A escuridão lhes protege para que caçoem de nós. Espetem-nos em silêncio. Para nosso desespero, acontece da luz, por vezes, lhes ser igualmente aliada. A nós sobrou dar uso ao engenho, desenvolver maquinários e armas químicas. Avançamos, porém, o fluxo vermelho de nossas veias ainda é drenado. Os adversários são impiedosos conosco como nós somos com eles.

Desejo continuar nessa tarefa tão humana de narrar os fatos. Já não posso. Acharam-me.

 Malditas muriçocas!

Comentários

  1. Uma guerra sem vencedores, como toda guerra... Ganhamos nós, esse texto contundente e belo!

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    1. ❤️ agradeço, emcalombada e me coçando 😆

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  2. Mas descreveu direitinho o nosso cotidiano. Texto lindo.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)