O banho


 

Entrou no banheiro ainda distraída com as palavras de João. Havia esquecido daquela dedicatória. Pudera, fora em 2003. Tinha vinte e poucos anos, muitos planos e uma energia que, há tempos, perdera. Lembrava do namorico com João. No dia em que transaram perto da escada do prédio de Lílian. De quem era mesmo o aniversário?! Um sorriso colou-se em sua boca enquanto a água morna do chuveiro molhava suas recordações. “Você é como fogo em mim” foi o que João grafara no papel. O livro não era lá grande coisa. Um romance água com açúcar digno de um filme de sessão da tarde que só atrai pessoas que nunca experimentaram uma vida amorosa de verdade. O que salvava o livro era aquela declaração. Não importava que ela e João não se vissem há quase uma década, ou que o caso tivesse durado só um par de meses. Saber que ela atuou como fogo, queimando e fascinando alguém, isso sim perdurava e lhe enchia de vaidade.

Abaixou a vista se perguntando se, com aquelas celulites nas coxas, poderia ainda incendiar alguém. A auto estima começava a escoar pelo ralo quando bateu os olhos na perereca encolhida na esquina das paredes do box. O coração disparou, apesar de não ser uma mulher de muitas frescuras com bichos. Matava baratas, espantava aranhas, tirava caramujos das suas plantas. De fato, não lhe agradavam as rãs e os sapos. Achava-os excepcionalmente feios e nojentos. Mas, o problema não era esse. Havia uma diferença enorme em enfrentar algo vestida e ter que lidar com os adversários nua. A nudez a fragilizava. Nua, ficava exposta ao toque direto, perdia parte do direito de autorizar o que encostaria na sua pele. As roupas eram também um escudo, um palco onde, se necessário, se travava uma batalha pelo controle do próprio corpo. Sem elas era mais vulnerável, submetia-se facilmente.

Cogitou sair lentamente do banho, mas a espuma do shampoo já começava a escorrer pelo canto do rosto. Racionalizou: o pior que poderia acontecer era a perereca pular nela. Poderia tomar um susto, escorregar e se machucar. Respirou fundo. Traçou sua estratégia. Ensaboou-se encarando o animal. Reparou naquela brancura, nos olhinhos negros repletos de temor. Teve certeza que também a rã estava tensa. Como duas lutadoras em um ringue, calculavam os movimentos uma da outra. Devolveu o sabonete para a caixinha verde vagarosamente. Não queria que a ação soasse como ameaça. Entendeu que não eram duas lutadoras em um ringue, só duas fêmeas – para ela, toda perereca era fêmea e todo sapo macho – cientes de suas fraquezas. Realmente, nenhuma queria ser vista pela outra como um perigo potencial, porém, a natureza as colocava assim pela impossibilidade de travarem um acordo. Cruzou sua mente que seria fantástico se tivesse a capacidade de se comunicar plenamente com o bichinho. Diria: não tema, já termino aqui e você pode permanecer se quiser. Provavelmente, aproveitaria para enfatizar que ali a água só corria uma ou duas vezes por dia e, portanto, o melhor seria buscar uma lagoa. Antes de perder-se totalmente nessa conversa imaginária e divagar refletindo sobre como faria para indicar o caminho até a lagoa do bairro, meneou a cabeça devagar em direção à água. Um pingo jorrou no rumo da rã que, sobressaltada, subiu dois centímetros, embora tenha se mantido na mesma linha. Fez um grande esforço curvando as costas para garantir que a água que lavava seus cabelos não respingasse no novo abrigo do anfíbio. Tirou o sabão do corpo parte por parte, com uma delicadeza que a fazia sentir-se dançando balé.

Enrolou-se na toalha, com uma sensação de alívio e vitória. Pensou nas celulites das coxas e na fragilidade de seu corpo. Viu sua feminilidade como um desenho riscado entre fogueiras e águas correntes. Um manifesto suave e forte de uma vida em meio outras tão diferentes. 

Comentários

  1. Que reflexão num banho! Adorei

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  2. Q sangue frio! Rsrs
    Saber-se um(a) a mais e, ainda assim, único(a) é o q salva nossa humanidade...

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  3. Obrigada, rapalindas. Fiz uma ruma de ajustes de besteirinhas e acho que colei o texto da primeira versão... Só avisando, pois depois vou atualizar aqui.

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  4. Viu sua feminilidade como um desenho riscado entre fogueiras e águas correntes....amei essa frase! Que frase sobre ser mulher!

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)