O olho enviesado
Tinha medo de mal olhado. Assombração, escuro, barata, bicho brabo, nada lhe causava medo, nem o mais leve sobressalto –às vezes, um susto, se estivesse desprevenido. Mas o tal do mal olhado... Esse, sim, lhe amolecia até a alma! Só de pensar nisso sentia um arrepio na coluna, das ancas até a nuca. Tinha um medo feroz de mal olhado.
De pequeno, andava com uma fita vermelha amarrada no braço, d. Jônia Benzedeira que amarrou, justo para evitar quebranto. Foi crescendo e trocou a fita pelo escapulário que ela mesmo fizera. Cuidava de ter sempre um raminho de arruda no bolso da camisa, pra isso plantava mudas em todo canto, e um patuá com sal grosso no bolso da calça, também presente da velha benzedeira. D. Jônia era uma entidade na região.
Foi seu medo de mal olhado que acabou com o namoro. Ercília tinha o olho ruim. A mãe, que não tinha boca pra nada, falou que era boa moça, trabalhadeira, mas calou quando ele contou a história da roseira murchando e do gato desviando o caminho, eriçado. Juntou que gostava muito de dançar, e ele não, ficava insistindo para que aprendesse, e não gostava de ser tangido. Ercília fez cena, chorou para as amigas, depois xingou e por fim praguejou, “se não é pra mim, não é pra ninguém.” Foi a irmã que ouviu. O pai aconselhou a ir se benzer, antes da praga pegar, “praga de mulher ofendida pega igual infecção em ferida: descuidou, pegou.” Todos fizeram o pelo sinal três vezes.
Isso já fazia bem uns dois anos, coincidência ou não, não arrumou mais ninguém. D. Jônia garantia que o quebranto não pegara, mas ele cismava. Não que desconfiasse de d. Jônia, de jeito nenhum. Mas, e se ela só não queria incomodá-lo? Pensava nisso às vezes, enquanto vigiava o milho embonecando, na rocinha de meia com s. Altamiro. Pensava também no bolo de milho com queijo que a mãe fazia, e comia quente, mesmo ela falando que dava dor de barriga. Nunca deu.
Ercília não tinha arrumado mais ninguém depois que terminaram, mas seguia com o olho ruim. Será que olho ruim era de nascença? Será que tinha jeito de ficar bom? Achou que devia perguntar isso quando fosse se benzer de novo, pra semana.
Acontece que a chuva pegou de cair seguida, um amuado geral tomava conta de tudo. O povo ia ficando mais quieto, os bichos mais desanimados, só na roça o viço do verde molhado era bonito. De resto era um esverdeado lodoso, um fundo de rio obscuro. Soube que d. Jônia quebrou a perna, escorregou na entrada do galinheiro. Precisou vir ambulância da cidade vizinha, deu o que falar. Uma preocupação coletiva, vigília, oração. Enfim d. Jônia voltou para casa, perna engessada até em cima, só podia ficar na cama. As mulheres fizeram escala pra ajudar, os homens faziam o que podiam, que era sempre quase nada ou muito pouco, porque nesses assuntos eram uma negação e mais atrapalhavam do que ajudavam.
Logo tudo se ajustou e a velha benzedeira se recuperou. “Ficou magrinha, tadinha! Uma sombra do que era... O cabelo raleou demais, embranqueceu de uma vez. As mãos tremiam, seria fraqueza?” Ouviu a outra irmã contando para a mãe. Decidiu pedir a s. Altamiro um ossobuco do boi que descarnaram, e estava guardado no refrigerador dele, e levar pra ela, uma sopa forte, um bom pirão, logo arribava. Fez isso. S. Altamiro deu até uma cuia de farinha fininha e um tanto de fubá mimoso, devia muito à velha.
Ia pelo caminho, carregando a matula atravessada, admirado do avermelhado do céu no fim do dia, calculou o frio da noite, pensou que a velha sentiria dor no osso partido. Ia assim, pensando em tudo e em nada, mais distraído que atento. Chegou por trás da casa, cortando caminho. Viu Ercília saindo, sentiu um calafrio, ela não o viu. Entrou incomodado, a visão lhe azedara o dia. Ercília só embelezava... Ercília o desnorteava.
Deixou a matula com menina que sumiu pra cozinha, era neta de d. Jônia, a filha fazia a janta, adivinhou pelo cheiro. D. Dita era uma figura mirrada, pequena, nunca achara que fosse frágil, mas agora tinha certeza. Desconfiou que a podia erguer com um braço só. A velha o olhava com os olhos muito miúdos e cheios de luz, uma coisa difícil de entender. O jeito que ela olhava enchia tudo de paz, acalmava o coração, amansava a alma.
Se Ercília tivesse um olho bom, até ia aprender a dançar, que isso era coisa que logo se aquietava. Mas Ercília tinha o olho ruim e ele era medroso demais para apostar que esse olho cegava. Antes só, com receio, que acompanhado do próprio medo. Tinha medo de mal olhado e, agora, muito mais de amar errado.
Que história deliciosa de se ler!
ResponderExcluirEntrei na história e fiz amizade com todo mundo. Amei cada personagem.
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