O rei e a doutora
Acendeu o cachimbo e acocorou-se
ao pé da porta. Olhou a linha do horizonte e as crianças brincando embaixo dos
pés de pau. Não lembrava se tinha tido tanta energia na infância. Aliás o que é
isso mesmo? Sobre seu tempo de menina lembra de carregar muita lenha para
ajudar sua mãe. A dor nas costas que lhe acompanhava desde então lhe fazia lembrar bem de sua infância. Que bom que a netarada podia desfrutar das
meninices que a vida lhe negou. Perdida em seu pensamento, curtindo o fumo e se
preparando para remendar sua rede de pescar nem percebeu que mais uma mãe
aperreada com criança para benzer se achegava.
- Tarde, dona Chiquinha Doutor.
Era assim que era conhecida por seu pai ter sido o homem que ficava dentro do
boi do maracatu. Esse homem era chamado o “doutor do boi”. Daí a família passou
a ter o sobrenome, doutor.
- Tarde. Se achegue minha fia. O
que tem o bruguelo?
- Derde onti que tem febre, e
caga só a água. Será que vai morrê?
- Vai lá nada, muié, deixe de
falar palavra forte. A morte é forte por que nós dá força a ela. O mesmo pode
sê com a vida. Senta aí, fia, e me dá o menino pra cá. Pegando o bebê meio
molinho, ajeitou no canto do braço, como as meninas aprendem desde cedo com
suas bonecas e no caso dela, foi com os irmãos mais novos. Lá nos matos tirou o
galhinho de cidreira e começou a balbuciar as palavras aprendidas com sua velha
vó Andina. Conversou com o bebê, o deitou sobre o paninho embaixo da jurema com
cuidado pra bicha não se zangar. Jurema zangada mata um. Tocou a terra e os pés
do bebê com o barro molhado da chuva da manhã. Olhou o alto da serra e de lá
pediu a força que o bebê precisava pra se livrar do mal olhado. Fitou nos olhos
da pequena vida em seus braços, e disse:
- Fio, tu vai escapar por força
das matas. O ramo de cidreira passou procê a vida, não pisa os bicho, não come
mais do que tu precisar, não derriba árvore que não for pra te proteger. Não
vive com mais do que tu precisa. Ela vê tudo. Tu tem uma parte da flora na tua
veia agora. Guarda isso na tua cabecinha pelada. Caminhou de volta pra casa, o
cheiro do café pisado lhe chegou nas narinas. A farinha de castanha preparada
mais cedo já estava nos pratos da meninada. Devolveu o bebê para a desconsolada
jovem mãe.
- Pega teu bruguelo que ele ainda
haverá de te deixar acordada um bocado de noite.
- Vala minha nossa sinhora, pro
mode quê?
- É o que todo fio faz com as mães desde que nasce. É a sina das muié, depois de ser mãe não dorme mais que preste. Vai com Deus, menina. E leve aqui essa água benta pro menino beber de três em três horas. Misturou água, com um pouco de sal e açúcar e deu para moça levar. A jovem lhe pediu a benção e agradeceu inundada de fé. Era a curandeira da região. Era doutora das crianças do vilarejo dos pescadores. Voltou pra sua rede de pescar. Remendando os buracos feitos pela luta do peixe pra sobreviver, sentiu pena do coitado que não teve quem rezasse por ele. Lembrou do caldo de peixe com leite de coco que tinha tomado no dia daquela pescaria. Lamentou pelo peixe, mas ficou feliz por tê-lo pra alimentar a meninada. A noite chegava lenta e morna. O cheiro da fumaça do fogão a lenha se misturava com seu cachimbo e com o bafo que vinha do chão. A hora de dormir se aproximava, mas antes contaria história de trancoso pra netarada que já se sentava pertinho esperando seus contos. De alguma forma sentia que a vida já começava a lhe escapar pelos poros. Cada vida que trazia ao mundo, cada choro que ouvia dos bebês que tirava das entranhas das mães, cada desnutrido que reerguia, cada um daqueles que benzia e curava das caganeiras recorrentes na época. Cada um que via quase morto e depois aparecia no seu quintal correndo e brincando com seus netos parecia levar dela um pouco de vida. De alguma forma sentia que havia vindo ao mundo para aquilo mesmo. Era noite morna e as muriçocas já infernizavam suas pernas cansadas da vida dura e boa.
- Corre ali, Manoelito e vai
buscar um merda de boi seca pra queimar aqui pras bicha deixar nós dormir.
Olhou pra grande bola de bosta seca e pensou: “vaca é que é útil, tem a carne,
o leite, e até a bosta serve para alguma coisa. Tem gente que não serve é pra
nada”. Discordou do ditado que diz “fulano ou beltrano não vale bosta”.
- Rumbora meninada, vou contar a
história do rei que só queria ser merda.
Adoro quando a Jabutica escreve. Amei o final!
ResponderExcluirEngraçada essa forma que você percebe esse lado em mim. Só me percebo depois que você fala.
ExcluirDelícia de história, adorei!
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