O Tempo de Gigantes


Lindo. Ficava na direção ao nascente. Todos os dias se misturava com o nascer do sol fazendo a bola dourada ficar atravessada por seus galhos com folhas atrevidas e floradas. Com cheiro de inverno o Cajueiro Bolinha era um dos gigantes que compunha a paisagem da minha infância. Ele era orgulhoso, não permitia que subíssemos nele. Seu caule era reto e inteiriço, sem degraus para escalarmos em busca de suas bolinhas amarelas com gosto misto de doce e azedo. O que parecia antipatia de sua parte, no entanto para mim era um gesto de gentileza. Eu não era muito habilidosa em subir em árvores, mas seus galhos arreados tocando o chão permitiam que as crianças pegassem suas bolinhas suculentas sem muito esforço. O grande Cajueiro Bolinha ficava no quadrante esquerdo do mundo da casa.

A gigante Maju era magnífica. Uma mestiça. Acidentalmente a mangueira foi plantada junto de um cajueiro. Os dois entraram num acordo debaixo da terra e a árvore que de lá brotou era uma e outra, nem uma, nem outra, era única. O cajueiro pendeu para a direita e seguiu como um bom cavalheiro deixando espaço para a dama ao lado, a mangueira sem opção arreou para a esquerda formando com o companheiro de raiz uma enorme letra V. A letra maiusculíssima tinha uma banda de caju e uma banda de manga, por isso era chamada Maju. Quando chupávamos a manga sentíamos o cheiro do caju e quando cheirávamos o caju, salivávamos com o gostinho da manga. Maju no tempo das frutas lembrava um casal de noivos coberto de flores, cores e festas, quando não, lembrava um casal de velhinhos se apoiando para não caírem. Devido ao modelo de V, eram fáceis de serem escalados. Parecia que estávamos em dois mundos ao mesmo tempo. Os dois eram Maju e ficavam no quadrante posterior do mundo da casa.

A tamarineira era a gigante mais velha. Sua frutinha nada bonita era considerada por vovó um remédio para muita coisa, entre outras, para prisão de ventre. O que ela tinha de perfeito, para mim, eram os braços, grandes galhos largos em modelo de cama acolhedora. Eram fáceis de serem alcançados. Neles eu podia deitar e ouvir o silêncio da velha tamarineira. Eu não entendia bem o que ela falava, chocalhando folhas, mas sempre era possível ouvir o silêncio. Lá eu chorava e maldizia os dias e era nosso segredo. Ela acolhia meu pranto, meu corpo e minha dor. Essa escuta e cuidado foram diferenciais para mim. Essa gigante ficava no quadrante direito do mundo da casa.

O Rançoso ficava no quadrante frontal. As pessoas grandes (mas não gigantes) falavam mal dele por que seus cajus eram escassos e rançosos. Ele era alto demais e seus cajus se concentravam no topo. Serviam basicamente aos pássaros. Ele seguia insensível à maledicência doando uma enorme sombra para a frente da casa e um cheiro gostoso de flor. Dava seus cajus para os pássaros o ano inteiro, não respeitava as estações. Injustiçado, ele parecia indiferente aos olhares que lhes diziam de sua inutilidade, não se importava com o que falavam por que sabia bem quem era. A linha de frente do mundo da casa era especialmente bonita, perfumada e musicada, pois os pássaros faziam morada no Rançoso.

Todo esse território um dia ganhou um proprietário e tudo que tem preço perde a identidade. O mundo da casa virou o mundo de alguém.

Cajueiro Bolinha foi assassinado pelo homem que comprou o terreno do lado esquerdo. Maju foi tombada pelo mesmo agressor de Bolinha. A Tamarineira foi arrancada pelo outro proprietário da terra. Ele fez isso por que suas frutinhas atraiam crianças demais e o perfeitamente humano resolveu acabar com a algazarra. Rançoso foi o último a ser executado e o motivo foi tão torpe quanto o dos outros.

Foram-se. Hoje o lugar é menos bonito, menos cheiroso e o sol castiga os couros humanos como quem se vinga por terem lhe tirado as vestes de ramagens.

O Tempo dos Gigantes passou, mas eles deixaram suas lições. O Cajueiro Bolinha mostrou gentileza para com os pequenos. Maju mostrou a beleza do compartilhar um espaço. Tamarineira ensinou o valor da escuta e do acolhimento e Rançoso, sem esperar reconhecimento, passou pela vida recebendo a todos com música, sombra e perfume, por que cada um dá o que tem.

Comentários

  1. Nossa, Dê. Que boniteza de texto. O tempo é sempre dos gigantes, os pretensiosos é que se iludem que derrubaram o que é eterno.

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  2. Pois é Ritinha, achei que eles mereciam um registro. São reais e estavam apenas na minha memória.

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  3. Há tanta vida morando em nós, não é?

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  4. Senti nostalgia, vontade de conhecer esses gigantes...

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  5. Quando você vier ao Ceará levo você nos lugares onde eles fizeram morada. A casa da minha mãe fica bem no meio. Ainda se pode sentir a energia deles.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)