Saber o que se é

 

 


É certo que gente é tudo igual, feita de carne, osso e sangue; mas a essência, não. Quer dizer, o material básico é o mesmo, o que muda é o acabamento. Ia pondo tino nisso enquanto caminhava. Andava quando queria pensar. Não tinha pressa e nem destino certo, só precisava acomodar a inquietação das ideias.

O dia ia manso na quentura, tinha até uma brisa fresca, quase fria, que lhe arrepiava os pelos do braço. Um dia comum demais, próprio para pensar e dar andamento nas coisas, essas coisas que a gente vai acumulando por preguiça de pensar na hora, ou pela falta de tempo certo. Não gostava de coisas acumuladas, ficavam difícil de arrumar depois e mais desajeitadas para carregar, cansava.

Gente feita de ferro era uma gente resistente demais, firme e forte, forjada no fogo e na pancada, resfriada a força pra ir se moldando. Quase impossível de quebrar, mas que se corroía com a ferrugem, oxidava, ia ficando carcomida pelo tempo. Tio Zuza era assim, feito de ferro. Sua ferrugem, dizem, foi a morte da menina.

Parou na sombra do flamboyant para olhar em volta. Bebeu um gole d’água da garrafinha de bolso, todos achavam que era cachaça, não desmentia. Cada um que pensasse o que quisesse e melhor que conviesse.

Tinha gente que era de pedra, alicerce seguro, precisava cinzel e paciência para esculpir. Um pedaço mal tirado e a fissura não tinha conserto. Era necessário jeito e persistência para chegar a ser, conforme a batida rachava, podia até esfarelar. O vô Passarinho era de pedra, certeza natural. Vó Rosinha era sua água, “água mole em pedra dura...”, a vida inteirinha.

Aquele flamboyant estava ali há tempo demais, muito antes de qualquer um, na época da florada se via de longe, aquela copa vermelha, uma boniteza... Pensou que o pai e a mãe eram feitos de madeira, gente de madeira vai se entalhando no formão, às lascas. Ou no machado, toras maiores, desconfigurações. De dureza maleável, mais fácil no trato, são estrutura e sustentação, mas apodrecem, caruncham. Cupim e fungo, coisas invisíveis e ligeiras para acabar com madeira –eles eram isso um do outro.

Voltava, com a cabeça mais arejada e as pernas cansadas, há muito não tinha vinte anos... Media os passos para que durassem o tempo da solução. Pisava firme na terra conhecida, e com cuidado avançava nas considerações.

Lembrou de Helena e Homero, os gêmeos, amigos desde que se sabiam gente, o “trio inseparável” diziam quando os via chegar. Onde estava um estavam os outros, só se separavam na hora de dormir. Foi assim até ficarem adultos. Helena era gente feita de algodão, suave e gentil; Homero era de vidro, frágil e transparente. Uma vez, d. Jônia, a benzedeira, falou que tivemos muita sorte nessa vida, que achar os iguais assim era raro e a gente tinha que aproveitar, demos risadas, já sabíamos. Naquele tempo a gente era muito sabido das coisas intuídas. Depois, crescemos, desaprendemos. D. Jônia era feita de mistérios.

Subiu os dois degraus do alpendre e sentou na cadeira alta de vime, essa hora o sol batia só na pontinha da mureta, ficar ali era bom. Deu uma respirada funda enquanto espreguiçava, era um jeito de avisar pro corpo que a caminhada acabara, podia descansar. A cabeça, mais aprumada, começava a funcionar com presteza.

O problema era gente feita de bosta. Sem préstimo, nenhuma serventia, só aquela catinga incomodando, estorvando o caminho. Gente feita de bosta era cheia de mosca voando em cima: fedia mole, fedia quando secava, sujava os pés desatentos, impregnava. Gente feita de bosta não valia o trabalho de desviar o caminho dos passos. Aquele merda era assim, feito de bosta. Feito, não, arriado. Não valia a força do murro que queria dar na fuça dele. E os trouxas que vieram arremedar eram feitos da mesma bosta, suas moscas de estimação.  Pensaram que o levariam naquela conversa mole, cheia de “veja bem” e “não é bem assim”, não sabiam, estúpidos, que ele era feito de nuvens.

Gente feita de nuvens troveja! No macio de si, no leve, são cirros, cumulus, a solta imaginação. Gente feita de nuvem, vira, acumula, cumulonimbus despencando o céu sem piedade; fazendo enxurrada para lavar a merda da estrada. Dissolver gente feita de bosta.

Esticou as pernas enquanto tomava a limonada, sorriu. Era um belo dia para uma trovoada, chuva de verão, pancada d’água concentrada. Dia de lavar a alma.

 

Comentários

  1. Eu simplesmente amei esse texto. Enquanto ia lendo fui pensando onde eu me encaixava, como se se tratasse de um horóscopo.

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  2. Maravilhoso! Eu me vi feita de madeira, vidro, pedra, ferro e fiquei a me perguntar sobre os momentos em que estou fedendo.

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)