Catiroba, Dinho e Bilú.
Três da tarde,
sol alto, saíram correndo os dois para brincar no meio da rua. O cheiro do café
da vó rodeava o varandão da casa. A mãe gritou: “venham merendar antes de comer
poeira”. Voltaram rindo, topando e caindo. Comeram banana com rapadura. Sem
sentir direito o gosto, beberam água e voltaram a correr. O calção de um
caindo, a camiseta do outro rasgada pelo arame eram coisas insignificantes. A
bike jogada no chão se segurando para não pedir que viessem logo, mal se
aguentava ali comendo terra, louquinha pra rodar com a meninada e sentir o
vento no quadro e os suores dos garotos escorrerem por entre suas engrenagens.
Bilú e Dinho eram primos criados juntos, a mãe biológica de Bilú havia morrido
de parto, mas essas coisas não se conta pras crianças. A tia o criou como seu e
até o amamentou, pois sua irmã se foi quando Dinho tinha um mês, tinha leite
para os dois. Os meninos eram um só, talvez gêmeos não fossem tão iguais e unidos.
Aos 8 anos viviam pra rir das coisas da vida. Nem percebiam a pobreza que lhes
cercava por que juntos viviam a riqueza da infância. Catiroba, a bike, fazia
parte do esquema. Bicicleta de adulto dada para eles quando tinham 6 anos para
substituir o triciclo que já era pequeno demais para eles. Andavam um por cima
do outro com as pernas enormes sobrando, pareciam duas aranhas sobrepostas. Um
tio ficou chocado em como se divertiam com uma negocinho tão pequeno para seus
tentáculos enormes, e resolveu doar Catiroba que já não lhe servia para
trabalhar. Comprou uma melhorzinha, e os meninos herdaram aquela que seria
parceira das tardes de sol, de chuva, de luto, de guerra, de fuga. Catiroba era
a líder. Era ela que estaria à frente de todos os planos. Naquela tarde, era
dia de roubar o banco, e a bike estava de pleno acordo. Achava justo. Em tudo
concordava com os meninos. Seu corpo era todo acordo, em cada roda, aro, pedal
ela era só acordo. Só ficava chateada por que não a colocavam de pé do lado da
parede, sempre a deixavam jogada no chão. Guardava um certo rancor, mas tudo se
dissipava quando eles a pegavam e lutavam para se equilibrar em cima dela já
que ela era “gigantona” como a chamava Bilú. Achava-se muito importante quando
Bilu a apresentava para os amigos como: Catiroba, a gigantona. Estava tão ansiosa
para o dia do roubo do banco que dois dias antes furou um dos pneus. Bilú e
Dinho se desesperaram, mas o borracheiro resolveu fácil. “Esse médico das
bicicletas é muito bom” disse Dinho. E finalmente chegou o momento mais
emocionante da vida de Catiroba. Depois de anos indo e vindo para o trabalho,
sentindo-se nada mais que uma ferramenta de sustento do tio João, agora ela era
senhora da história. Bilu disse ao ver seu pneu furado: “sem Catiroba, nada
acontece”. Seu antigo dono cuidava, banhava, mas no dia que ela adoecia, ele ia
para o trabalho sem ela e só no fim de semana a levava para o “médico”. Nunca
se sentiu parte de algo maior, era apenas instrumento. Bilú e Dinho sabiam do
seu valor. Vamos ao banco. E lá iam os três. Bilú sempre começava a aventura e
Dinho ia na garupa em pé apoiado nos ombros do primo-irmão e sua posição sempre
agoniava D. Liduína: “menino tu vai cair, peste dos infernos. Esses meninos são
uns capetas”. O vento e o sol assistiam a tudo sem em nada atrapalhar. A pele
queimada de Dinho acolhia os raios de sol e o vento abanava o rosto e o sorriso
de Bilu que engolia as orelhas quando estavam numa descida. O banco era no fim
da rua. Entraram por trás, pelos quintais, pelos esgotos. Tiveram de carregar
Catiroba nas costas, isso a deixou bem desconfortável. Chegaram pelos fundos da
velha casa abandonada que em sua imaginação era um banco cheio de ouro e outras
riquezas. Colocaram suas máscaras, deixaram a parceira apoiada lá fora. Cheia
de emoção, Catiroba aguardou a volta. Lá vem eles, correndo e fazendo na boca o
barulho de sirene da polícia. Sacos cheios de “ouro” nas costas subiram na
parceira pronta pra salvá-los daquele barulho infernal. Na volta os meninos
revezaram e Dinho era o “motorista da vez”, Bilú ia atrás carregando o ouro.
Dinho gritava, vai Catiroba, vai Catiroba. E ela rodava e rodava e lá no alto
do alto da rua viu que as gargalhadas aumentariam quando começassem a descer,
assim foi. No meio da descida, Dinho perdeu o pedal e descontrolou o giro.
Foram ao chão. Cada um para um lado diferente. Uma mistura de terra, sangue,
dor se fazia na cena dos “criminosos”. Bilú correu ao seu encontro e aliviado
disse: “Dinho, Catiroba está inteira, levanta, corre que a polícia tá vindo”.
Antes que a bike percebesse que estava tudo bem, já chegavam em casa e a mãe
ralhava com os pirralhos. Mandou os dois pra cacimba tomar um bom banho, passou
mertiolate gerando gritos e choros e Catiroba jogada no chão, perto do “ouro”
ainda tentava entender os acontecimentos daquela tarde mágica. Não tinha
reclamado de nada, mas sentia-se meio torta. Os meninos estavam de castigo,
então ela ficaria jogada no chão por alguns dias, queria um bom banho. De
repente sentiu aquelas familiares mãos de sempre levantarem-na pelo guidão. Seu
antigo dono havia vindo visitar os meninos (ou seria a ela?) e a recolhendo do
chão disse: “ser trabalhador é difícil e cansativo, a gente num pensa, só
obedece, mas ser livre tem um preço também”. Catiroba estava feliz em vê-lo e
saber que ele cuidaria dela, e mais ainda por saber-se livre.
Ai, Catiroba do meu bem querer ❤!
ResponderExcluirNão sei como, Rapha, mas seu texto sobre voltar à casa me inspirou a falar da Catiroba.
ResponderExcluirUm texto com gosto de infância, de sonho e de aventura. Adorei ler um conto pela perspectiva da bike!
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