Conheci sua mãe numa noite de samba
Década de 80. Enfeitou-se
ouvindo Ney Matogrosso cantando “Promessas demais”. Escovou o cabelo fazendo-o
ficar mais alto, conforme manda a etiqueta da moda da época. Escolheu a calça
cintura alta com blazer por cima do top verde limão. Havia uma noite linda a
esperando lá fora. Assistiu ao último capítulo da novela Paraíso e
sonhou com seu final feliz. Era noite de samba e quem sabe seria uma noite pra
mudar sua história. A vida parecia uma sequência de tragédias desde que sua mãe
havia morrido quando tinha 15 anos. Depois disso viveu para cuidar dos irmãos e
das irmãs menores. Era o destino das meninas, mais velhas, quando a mãe partia
para o andar de cima. Ser a mãe dos irmãos. Quem seria sua mãe? Ela mesma. Uma vida
com folga financeira e pouco amor. Encontrou o amor da sua vida, mas a morte o
levou também num trágico acidente de carro. Seu pai faliu e entregou-se à
bebedeira. Ainda arrotava caviar, mas dinheiro não tinha nenhum. E agora aos 30
vivia o que vida tocasse de sorte e naquela noite, sentia que a Lua lhe deixava
mais brilhante. Noite de samba. O irmão mais novo a levaria e lá ela poderia
soltar todos os demônios. “Oh vida cheia de desgraça, nada que a música não
resolva”. Chegando lá o cantor entoava “e o neguinho gostou da filha da
madame, que nós chamamos sinhá, senhorita também gostou do neguinho, mas o
neguinho não tem dinheiro pra gastar, a madame tem preconceito de cor, não pode
evitar esse amor”.
Essa música
ressoava no seu ouvido quando voltava pra casa ainda sentindo a força daquelas
mãos negras lhe pegando de jeito. Angustiada, pensava:
- Mas ele, o
cantor, é preto e gostoso como coca-cola. Riu sozinha.
- Talvez meus irmãos
não me matem, afinal ele tem grana. Cantor da noite tem grana? Preto como os
empregados da fazendo do falido papai. Foi só hoje. Pensou resignada.
Não, não seria
só naquela noite em que sua pele branca se misturaria com aquela pele de ébano.
Houve várias. E vários ataques também. Seguiu em frente à revelia do que
pudesse dizer a branquitude familiar conservadora. E mais uma tragédia: “sou casado”.
Ciente do estrago que poderia fazer, tentando recuperar um mínimo de dignidade
que poderia estar no fundo daquele poço em que se encontrava, respondeu: “está
bem, melhor encerrar por aqui, não quero atrapalhar sua vida”. Ele se foi. As palavras
dos irmãos ressoavam: “preto não é gente”. Ódio lhe corroía, mas havia algo
dentro dela além de ódio, uma vida se formava. Seria seu segredo. Seis meses
depois ele voltaria a lhe fazer uma visita e a vendo grávida, questionou quem
seria o feliz homem a tê-la. Resignou-se a dizer: não é da sua conta. Foi mãe
solo, também teve uma morte solo aos 54 anos. Deixando ainda mais só o fruto de
uma noite de samba.
Ciente de que
não poderia merecer a bela branquinha, foi-se na noite em que ela insistiu que
o filho não era dele. Algum tempo depois, ganhou uma foto daquele que poderia
ser um de seus herdeiros e a semelhança com os demais o intrigou. Voltou a buscar
o garoto já que a sua mãe fazia questão de não lhe ter por perto. Desencorajado
a continuar sua busca, informado de que a família não queria negros por perto,
afundou-se na bebida e naquilo que sua gente sabia fazer de melhor: sofrer. Continuou
a vida, e o aboio do gado lhe mandava levantar e seguir em frente, ainda que
sempre estivesse olhando para trás. Havia um menino engasgado entre o futuro e
o passado. Sempre quando possível, pedia notícias das bandas desse povo branco
que carregava sua semente preta, mas ela e seu rebento haviam desaparecido no oco
do mundo. Não era certo. Havia errado com ela, mas não queria errar com o
garoto. Para onde haviam de ter ido? Via na rua meninos sem pai, apanhando dos
outros, mães amargas e solitárias, defendia esses garotos, criou filhos dos
outros como seus, desejando que alguém fizesse isso por aquele que sentia
carregar um pedaço dele consigo.
Passaram-se 38
anos. Encontrou dona Valda, aquela que lhe daria o número do telefone da
madrinha do menino perdido. Foi numa sexta feira do ano 2021 que ouviu a voz do
seu filho. Sua primeira frase foi: Conheci sua mãe numa noite de samba, faz mais de 30 anos que te procuro. Eu sou
seu pai e nunca deixei você. Levaram você de mim.
Onde o racismo,
o machismo, o classismo e a mentira podem levar alguém eu não saberia dizer.
Dê, eu diria, se soubesse menos, que essa história era fantástica. Mas, sabendo o que sei, digo que em meio ao fantástico que ela tem, aos amores tortos que ela narra, há muita dor. Só me resta desejar que o amor possa vencer de agora em diante!
ResponderExcluirPois é...eu também. De minha parte estou azeda. Pedi autorização pra escrever a história pra ver se me alivio.
ResponderExcluirOs caminhos tortos, e cheios de encruzilhadas, da vida dão as voltas necessárias, num tempo particular... Não sabemos, só seguimos e como o fazemos é sempre um mistério.
ResponderExcluirÉ Rapha, esse mistério que parece tomar as nossas rédeas é que me faz pirar, fica um cheiro de: não importa o que eu faça, existem forças para além de mim que podem mudar o curso da história.
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