Consonância
Naquela manhã azul e fria de outono, quando abriu a porta de casa, a ferocidade da vida pareceu-lhe demasiada para sua parca audácia. Tudo era muito maior, mais vibrante, mais intenso, exceto seu ânimo, claudicante e inseguro. Queria passar o dia em casa, com música, livros e chocolate...
Deu uma olhada longa na sala, antes de trancar a porta por fora, não queria mais trocar o tapete, mesmo que estivesse manchado de vinho, lembrança de uma noite boa. Aos poucos simpatizava com a mancha, quase discreta. Guardou a chave e logo atravessou a rua, o sol batia na outra calçada, ainda que mais quebrada, queria se esquentar um pouquinho.
Talvez o calorzinho do sol, a suavidade do vento, o avançar dos passos, o caso é que a vida lhe parecia um pouco mais branda, sua audácia se expandia lentamente e seu ânimo se firmava. Começou a desejar coisas da rua, um café com creme na padaria, daí quatro quadras; almoçar naquele restaurante que tinha uma parede cheia de plantas e um laguinho com carpas, perto do centro; desviar pela rua do comércio para olhar as vitrines. Animou-se de vez.
Passou ao lado da escolinha da prefeitura, ouviu as crianças correndo, gritando e um apito, devia ser aula de educação física, a cerca viva junto à grade fechava a visão da rua, contudo não impedia o som, se morasse ali do lado não gostaria todos os dias, mas naquela hora gostou. Achou que a vida se amansava muito, com a algazarra das crianças, e sua audácia se fortalecia. Diminuiu o passo para alargar a sensação.
Se prestasse mais atenção, ouviria as expectativas do mundo, das singelas às mirabolantes, pululando a cada respiração, num frêmito vertiginoso de desejos e ansiedades. Mas andava desatenta na manhã azul e já não tão fria. Tinha os pensamentos preguiçosos, ela mesma era uma espécie de lentidão e morosidade andarilha, há dias em que se precisa de mais tempo, mais alento.
Atravessava a pracinha, ridiculamente pequena, mas banhada de sol, quando viu o homem sentado no chão, perto do único banco que não estava quebrado. Sem camisa, o torso nu, parecia um velho, mas não sabia dizer ao certo, os cabelos emaranhados lembravam um ninho, era uma figura absoluta na praça vazia de gentes. Ele fazia um movimento eloquente com os braços, em silêncio, compenetrado. As pombas, ao seu redor, voavam conforme gesticulava, e pousavam nos fios dos postes.
Distinguiu, então, uma vareta em sua mão: o homem regia as pombas. Como um maestro, de batuta em riste, o velho orquestrava a movimentação colombina e via nos fios uma pauta, a espera das notas, a espera da partitura completa, da música incognoscível a qualquer outra audição.
Um tipo de ternura, piedosa e triste, a impediu de continuar. O homem absoluto regia as pombas confusas, a comoção da peça era tocante e ela esperou até o fim para aplaudir. O regente não pareceu surpreso quando ficou de pé, e a olhou muito sério, antes de agradecer com mesura. Tampouco ela achou-se louca, tudo era perfeitamente normal, comum e esperado. O flerte com a loucura alheia era a traição mais emocionante da razão.
Rapha, que imagem fantástica! O homem absoluto, as pombas, a pauta dos fios. O mundo pode ser surpreendente se olharmos bem (e deixarmos a loucura nos contaminar).
ResponderExcluirÉ preciso ter espaço para a loucura. Deixar-nos enlouquecer! Lindo texto, Rapha.
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