Temporalidade adversa

 


 

A voz, um pouco alegre e jovial demais, escondia uma certa ansiedade, só os muito íntimos reconheceriam. Mostrou-se animada e expansiva, como que para contornar as tantas dúvidas e incertezas que lhe rondavam. Era uma interação angustiante, porém necessária para ambas, passos medidos e um desconfortozinho, desses bem miúdos, que só incomodam se nos distraímos e o deixamos se expandir.

Falaram do tempo, pouca chuva e o frio já aí: essa noite foi gelada; aqui também; usei até pijama longo com o edredom, sabe, aquele que você me deu? O pijama ou o edredom; os dois. Riram, brincando com o exagero do frio, falando coisas que só as duas achavam graça e entendiam. Era uma alegria tão insegura!

Sinal ruim, ligação falhando, um certo alívio culpado. Intimidadas pelo entorno ficaram no convencional, muito distantes do que eram: ficou uma mala minha lá; e aí? Vem depois, ficou muita coisa, sabe aquele móvel do meu quarto? Sei; também ficou, o caminhão veio cheio, estavam arrumando a rua e eles tinham pressa; (silêncio); mas depois traz, né? É, depois leva o resto que ficou; (o chiado na ligação preencheu esse silêncio). Deus te abençoe; amém; quando estiver tudo mais arrumado, você vem, né? Vou, sim; vem mesmo; vou; fica com Deus; a senhora também; tchau; tchau.

Quando, é uma traça a comer as fotos, as cartas, os livros. Quando, é um tempo de exata imprecisão, mas devia ser agora.

 

Comentários

  1. Não consigo deixar de pensar como nós complicamos as coisas. Tantos silêncios, disfarces e "quandos" interpomos (interpus) nas nossas relações?

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  2. E enquanto vamos colocando esses "quando" a vida vai passando.

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  3. "Quando, é uma traça a comer as fotos, as cartas, os livros." Essa frase é um verso inteiro

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)