Um gosto na noite
Ficou com aquele gosto
meio amargo na língua, um gosto incômodo de palavras não ditas e engolidas sem
água, sem vinho, a seco. Ainda que não quisesse, o gosto a fazia lembrar e
continuava incomodando, como um pedaço de carne preso entre os dentes. O gosto
mudava quando passava a língua no céu da boca, era um gosto indecifrável,
talvez de vontade, porém, os dentes travados, a mandíbula tensionada, dificultavam
esse movimento e ela permanecia, com o gosto meio amargo do incômodo.
Saiu para caminhar, a noite estava fria, com um vento cortante, mas ela não se importou. No fundo, queria sentir outro incômodo que não o do impronunciado. Queria sentir outro gosto, talvez o da noite e suas tantas possibilidades, o gosto do amplo, gosto do que puxa para fora e não embota nunca. Na verdade, precisava abrir a boca para respirar, deixar a língua dançar no céu, qualquer céu.
Os barulhos da noite são um mistério lindo.
Atenta aos ruídos outros, parou de persentir sua miserabilidade, seu ser deslocado e inapto para tantos poucos. O nariz gelado pingava, aquela coriza milenar, a explicação sobre calor, frio, condensação e tantos outros conceitos, rodopiavam em seus pensamentos. Um grande baile, uma noite dançante de sentimentos, racionalidades e informações: sua cabeça.
Um gato caminhava no muro. Assustou-se quando pulou e correu na sua frente. Parou. Buscou, curiosa, o rastro do bicho que sumira num terreno baldio. Tropeçou na guia da calçada quebrada e xingou, enquanto sentia alívio por não ter caído. A luz do poste estava fraquinha, mas não queimada, era difícil achar qualquer coisa, ainda mais um gato enfiado no mato. Ficou escutando os sons indecifráveis, indecisa entre seguir ou sentar no meio-fio. O vigia noturno passou com sua moto desregulada pela rua, sentiu uma espécie de desagrado e seguiu. Não gostava quando decidiam por ela, mas, enfim.
O gosto meio amargo da língua era quase imperceptível, agora tinha muita sede. Tirou o casaco fino para sentir o vento gelado na pele, o arrepio involuntário, o frio. Muitos passos adiante, escutou o inconfundível barulho dos gatos trepando, aquele escândalo na noite quieta a fez sorrir. Diminuiu o ritmo para gozar do gozo alheio e, em sua língua, o gosto adocicado do êxtase se espalhou também pelo céu da noite imensa.
Cá com meus botões fiquei imaginando se a vida não são esses gostos (amargos, doces, salgados e azedos) que vão perdendo as forças, se misturando com outros sabores e dissabores (nossos ou não).
ResponderExcluirPassa por aí, tb desconfio. E, certamente, pela tentativa, nem sempre bem-sucedida, de identificar cada um...
ExcluirFiquei um bom tempo parada na frase que me indicava entre seguir e sentar. São tantas vezes que me sinto assim e de fato os sabores indecifráveis, quando descobertos ajudam a seguir.
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