As pequenas salvações
Olhava fixamente para o nada, embora soubesse que o nada não podia ser objeto de contemplação. Sua cabeça habitada por palavras espaçadas e desconexas. A sensação de um amargor e um leve embrulho no estômago. Ela sabia que o corpo só estava respondendo àquela certeza, cada dia mais forte, de que a vida não tinha sentido. Insistia, porém, eu pelejar consigo e tentar provar o erro daquela constatação. O óbvio a machucava intensamente. Durante anos, criou uma caixa interna em sua consciência onde alocava as dores insuportáveis que o cotidiano lhe esfregava na cara. O menino fazendo malabarismo no sinal em troca de vidros fechados e rostos insensíveis. A idiotia reinante nos discursos religiosos e políticos. A hipocrisia de familiares e amigos que, nunca tendo aberto mão de qualquer comodidade em nome do bem alheio, falavam como se fossem a encarnação de são Francisco. O desrespeito sádico na lida com a natureza. Tinha clareza de que foi a existência dessa caixa que a permitiu rir com alegria sincera, amar e ter esperança ao longo do tempo. Agora, infelizmente, o peso da caixa tornara-se demasiado. Não era suficiente traduzir sua inadequação a esse mundo com problemas médicos – ela sempre soube que sua bursite não poderia ser curada pelos remédios que lhe receitavam os doutores. As paredes da caixa simplesmente não resistiam mais ao volume do conteúdo. Aquela mulher – era uma mulher? – estirada num pedaço de papelão na esquina da casa de seus pais fora a gota d’água. Registrou-a apenas com a visão periférica, mas não era preciso fazer uma pesquisa de pós-graduação para entender sua história. O papelão e o lençol diziam tudo o que importava. Um dia ela tivera uma cama e hoje não tinha mais. Uma lágrima cruzou até seu queixo. O nada agora estava nublado pela inundação levemente salgada e incontrolável que brotava de dentro de si. Teve a impressão de que toda falta de sentido a afogaria. O conteúdo da caixa fizera-se mar. Um mar ameaçador e violento. Quis sucumbir, desfazer-se por inteiro naquele oceano de angústia. Se tivesse tido força, talvez tivesse ido à gaveta de remédios e tomado todos de uma vez. Foi içada à superfície por um embuá que lhe tocou o pé direito. Sua reação involuntária de mexer o pé fez o bicho enrolar-se. Ficou parada observando aquele corpinho em espiral enquanto, internamente, sua caixa de dores era reconstruída.
Por caixa de dores feitas de metal, pois as de papelão já não suportam mais.
ResponderExcluirDe vez em quando é importante abrir a caixa para ver q algumas dores já não o são, outras solidificaram-se em forma de luta e resistência e algumas permanecem para nos humanizar, enquanto a dor do outro lhe doer tb, há salvação.
ResponderExcluirVerdade, meninas. Precisamos ser metal e doçura para seguir sendo nesse mundo transformando as dores em força para luta.
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