O Estalar de Dedos

 

Um estalar de dedos

 

Sempre ouvi desde criança a expressão: “num estalar de dedos” isso passa, ou aquilo se resolve. Na infância não tinha muita dimensão do que isso poderia significar. Pelejei a prática para aprender a ter um estalar de dedos bem mágico como eu via os adultos fazerem quando queriam mostrar coisas rápidas acontecendo. O tempo passou e a vida adulta apagou muito da magia que a gente vê nas coisas. Parei de exercitar o estalar de dedos. Nos últimos tempos, entretanto tenho visto tanta coisa acontecer como se fosse um toque de uma varinha de condão, um piscar de olhos, ou o tão conhecido estalar de dedos. Assistindo pela enésima vez Vingadores: O ultimato em companhia do meu filho que tenta sempre estalar os dedos no momento em que o Titã tirano Thanos estala os dedos e dizima parte da população da terra, o velho gesto que me encantava na infância voltou agora, mas em forma de lição e não encantamento.

Esse estalar de dedos é meramente um gesto que tem por trás longo tempo de ações. Minha mãe Janaína tem me dito que as coisas não acontecem de forma rápida. Não existe o rápido. O rápido é uma noção equivocada de tempo. Quando alguém diz: “nossa, você resolveu isso rápido!”, é um enorme equívoco, por que para resolver algo rápido eu preciso ter anos de experiência tentando, fazendo, errando, recomeçando. Um grande amigo me disse uma vez: ‘a perfeição só vem com anos de repetição, acerto e erro”. Esse grande amigo acordou um dia e o emprego dele, baseado em concurso, 12 anos depois lhe foi tomado. Alguém estalou o dedo e ele não era mais legalmente um professor da instituição. Foi assim que essa decisão foi tomada? Não. Foram anos de justiça morosa rolando para prejudicar um homem bom. Do mesmo modo que uma pessoa passa 30 anos em cargo público sem fazer nada útil por uma população inteira e consegue montar seu berço esplêndido e alcançar o cargo máximo do país. As pessoas não morrem de uma hora para outra, ainda que seja um acidente doméstico bobo, a verdade é que aquilo que parece algo trivial é resquício de uma crença antiga de que nós humanos somos muito espertos. Um homem bom morreu queimado após ter tido seu colchão atingido por um raio e ao invés de chamar o corpo de bombeiros, resolveu tirar o colchão de dentro de casa para salvar sua moradia. E com um estalar de dedos estava ao chão com 80% do corpo queimado. O fim pode ter sido rápido, mas a ideia de que salvar “os pertences” seria a coisa certa a fazer, foi construída por uma longa temporada de valorização das mercadorias. E não vale dizer que ninguém avisou, pois Marx fez um longo trabalho reclamando do quanto valorizamos as mercadorias mais do que de fato valem. O pobre homem não é um idiota, só foi um bom aluno ao longo de sua vida. Lutamos muito para conquistar tudo que temos. E por isso mesmo permitimos que se queime o que somos.

Thanos decide fazer virar pó metade da população. Sem dor, sem tempo para despedidas as pessoas simplesmente se vão, se apagam no tempo e no vento. Essa ficção está tão próxima de nós que me pergunto se o filme se inspira na realidade dos fatos. Numa canetada (outro sinônimo para estalar de dedos) alguém decide que não vai aceitar a compra de vacinas de um determinado país. Numa frase infeliz (outro sinônimo) alguém deixa todo um rebanho de gente morrer por que atrapalha os acordos comerciais. Thanos se diz inevitável, o mal seria inevitável? Ao olharmos para nossa história podemos vê-lo dos mais diferentes modos, ele é quase tangível. Um homem decide que mais de seis milhões de pessoas judias devem morrer. Num outro momento histórico, se você não comesse carne de porco poderia ser confundido com judeu e viver o inferno nas mãos dos santos católicos como nos mostra o filme Sombras de Goya. O mal é mesmo inevitável? Buscar essa resposta é perder tempo. O que se apresenta é que, inevitável ou não, ele é sempre construído ao longo de muito, muito tempo. Não diferente é o seu oposto. Não se constrói vida coletiva num estalar de dedos. Tomando como base o filme que desencadeou esse texto, os que tentam eliminar Thanos, vem de diferentes mundos, culturas, olhares. Até o momento em que o tirano é eliminado, os diferentes grupos perdem tempo guerreando entre si, se perdem em racismos, medos, alienação, separam-se, distanciam-se. Segregados e enfraquecidos, veem metade dos seus virarem poeira. Na dor encontram um modo de se unirem e voltarem no tempo para destruir aquilo que parece inevitável. O filme deixa um vestígio de esperança mostrando que há também o estalar de dedos que salva vidas. Assim se queremos uma canetada para ter de volta políticas que acolham as desigualdades, se queremos uma canetada que apoie a ciência, a educação, precisamos unir saberes. Precisamos ser mais espertos do que temos sido. Precisamos eliminar as divergências. A canetada é construída por uma longa trajetória. O piscar de olhos que derruba uma presidenta começa na admiração a um torturador cerca de cinquenta anos antes o golpe, a canetada que decide a prisão de um político é construída numa justiça colonizada de mais de quinhentos anos. A canetada que decide o fim da carreira de um professor é a mesma que decide eleger reitor aquele que não foi eleito. Todos esses fatos estão interligados e todos são longas construções de um mal que só parece inevitável. As forças que o anulam, entretanto, precisam ter a convicção de que os dedos que estalam são tâmaras, plantadas hoje, para daqui a cem anos serem vistas.

Comentários

  1. Dê, importante demais essa discussão. Como tudo o mais, a esperança que temos hoje (ainda que sempre pareça menor do que deveria) é fruto de ações, palavras e ideias assim.

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  2. Adorei a discussão, a explanação do oculto q é visível no momento q acontece, mas já estava ali é mais q necessária. Q possamos ter olhos abertos, ouvidos atentos e nenhum sentido nublado pelo q não importa de verdade.

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