O sol que nos queima*
O problema não era novo. Ela desabava a chorar a troco de nada. Ou do que os outros diziam não ser nada. Aos 11 anos, já tinha aprendido que ‘nada’ era uma palavra que usavam quando queriam prender seus sentimentos e pensamentos numa gaiola bem apertada. Agora mesmo, sabia que a mãe, se lhe visse, iria dizer que ter esmagado a minhoca não era ‘nada’. Ou seja, a minhoca inerte e de entranhas expostas por causa de sua falta de atenção não importava, não merecia sua compaixão. Às vezes, o ‘nada’ que os outros lhe impingiam lhe soava como um ‘você é boba’. A cada ‘não é nada’ que ouvia era tomada de um misto de tristeza e revolta.
É verdade que, ela mesma, não entendi bem os motivos de muitos de seus choros, mas sabia de sua potência. O escorrer das lágrimas ajudavam-na a se acalmar, a cuspir o gosto amargo que a vida parecia ter em certos momentos. Quando o soluço parava, normalmente, ela se sentia como quando iam na praia e o vento forte que vinha do mar aplacava o ardor do sol. Suspeitava que chorar podia ser como uma ventania que jogava a água que temos dentro do corpo para fora, molhando nossa pele e permitindo que a gente aguentasse um pouquinho mais a brincadeira antes de correr para debaixo do guarda-sol. Ela nunca contara sua teoria do choro para ninguém. Era esperta o bastante para saber que os adultos não ouvem explicações de meninas de 11 anos e que suas amigas e primas não são tão confiáveis assim (Em outra ocasião, vira a prima revelar o segredo da amiga de escola só para fazer troça. Aprendeu a lição sem precisar ser vítima!).
O problema para ela, portanto, não era o choro. Mas a necessidade de chorar baixinho sem ninguém notar. Chorar sem fazer barulho fazia sua garganta doer, como se uma bola de pingue-pongue tivesse que ser engolida inteira e a seco. Era pior ainda quando, nem sequer as lágrimas sem voz, tinham direito de rolar bochecha abaixo. Certa vez, na escola, onde alguns já haviam lhe apelidado de manteiga derretida, ela teve que arregalar muito as pálpebras e ficar sem piscar, enquanto corria para o banheiro. Fazer isso havia lhe doído tanto quanto no dia em que o pai lhe dera uma surra. Como na surra, a dor era menos no lugar da pancada e mais com uma opressão comprimindo seu peito.
Pensou tudo isso em uma fração de segundos. Apesar de parecer muito, entendia que a cabeça da gente tinha esse dispositivo que os filmes usam vez ou outra, mostrando, em câmera lenta, as coisas que, no mundo dos relógios, acontecem antes que um ponteiro consiga se mexer. Ouviu passos se acercando. As águas internas já na porta de saída dos olhos. A ideia da bola de pingue-pongue. Da dor do silêncio imposto pelo arregalar das pálpebras. Mirou ao redor uma fuga. Sobre a mesa, vizinha do corpo morto da minhoca, somente o caderno e os lápis. Instintivamente, pego-os com avidez. Ia fingir que escrevia alguma coisa e que estava concentrada. Com uma sorte, não reparariam no seu rosto.
Ficou surpresa quando notou que, ao invés de palavras fingidas, ela havia desenhado uma grande nuvem chovendo sob um gramado pintado em um verde-claro bem vivo. O desenho pareceu-lhe uma homenagem condizente ao bichinho falecido pertinho de seus pés, uma mistura de tristeza chuvosa pela morte prematura e alegria esverdeada por ter vivido numa escola com quintal e árvores. Aos 11 anos, ela descobriu que era possível chorar sem derramar nenhuma gota de líquido. Desenhar podia ser outra maneira de suportar o calor intenso do sol da vida queimando nossa pele.
Q bela teoria! Adorei o texto! Ainda bem que há o desenho, a arte, na vida, a fazer sombra em dias escaldantes...
ResponderExcluirOntem a noite, nós todos da turma apresentamos nossas produções. Eu fiquei maravilhada com a potência que é pedir pra as pessoas escreverem ❣️
ExcluirAs palavras, qdo escritas, têm sua força potencializada, acredito eu.
ExcluirRitinha, esse texto é a representação do que sinto quando escrevo. Obrigada por me traduzir tão bem,
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