A vida assim: diáfana
Quando olhava pela janela não o via. Se saía à porta, ele não aparecia, mas podia ouvir o menino brincando no quintal. Ele falava sozinho, às vezes cantava, batia palmas e ria. Estava frio e, por isso, suas bochechas avermelhadas. Tinha uns olhos clareados, onde se refletia o céu. Às vezes agachava, na sombra da árvore, e mexia com um graveto nas folhas secas caídas. Tinha, ainda, os braços curtos e quando os erguia não passavam da cabeça, era engraçado ver que o seu “grande” não era assim tão “grande” como, certamente, queria, mas estava em expansão, o que ele, sequer, desconfiava.
Com as mãos pequenas, pegava punhados de areia e lançava no ar, enquanto soltava gritos para imitar os passarinhos. Seus dedos miúdos faziam buraquinhos no monte, levemente umedecido pela condensação das primeiras horas da manhã. Seu cabelo, muito liso, estava um tantinho arrepiado e um suave cheiro de xampu ainda era perceptível.
Agora andava concentrado, cuidando para não deixar cair a água do baldinho, fazia o caminho até a torneira com passos muito pensados. Repetiu o trajeto inúmeras vezes, ia pulando, voltava pensando. Parecia querer encher uma pequena poça, cuidadosamente escavada no flanco do monte de areia. Ele ia e, quando voltava, a água tinha sumido. Não se abatia ou desistia, não cansava, só refazia o caminho, com a mesma alegria estoica e determinada. Sentiu um pouco de pena de sua ingenuidade.
Logo descobriu que a areia molhada era moldável e a apertava entre as mãos, com uma enorme satisfação. Não sabia bem o que fazer com aquela novidade, então só a pegava, fazia um amontoado e esfacelava. Quis lhe mostrar as forminhas de bichos marinhos, o polvo, o peixinho, a concha, talvez gostasse e achasse mágica, a capacidade de desformar sem quebrar. Ainda acreditava no imponderável e se encantava com o mistério. Tudo o que, sem explicação, acontecia, o deixava extasiado.
Devia leva-lo à praia, num dia quente e gostoso de verão, deixa-lo brincar no mar, ao entardecer. Depois de muitos castelos e piscinas, poderia ficar com os pés na areia até o pôr-do-sol, maravilhado com essas coisas simples e cotidianas. Talvez ele também visse beleza no banal e achasse extraordinário o jeito como as ondas dançam, infinitas.
Ficou ouvindo o menino pelo
quintal. Na manhã recente, gélida e exigente, o sorriso só atrás da cortina, a
vida assim, diáfana, a mastigava e cuspia.
Tive um deja vù, viajei no tempo da minha vó, já inspirada pela campanha da Djamila que você me marcou, tenho rememorado tantas vivências deliciosas com ela...obrigada...
ResponderExcluirO texto me deu um nó na garganta. A beleza às vezes tem disso. Que a gente ouça sempre essas crianças em nossos quintais.
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