DENISE CONVIDA: GISELLE SANTOS

 Paraíso: o sonho construído

Era mais um dia que Rita adiava o acordar, adiava o levantar e adiava o ir para a universidade. Se alguém lhe dissesse que isso aconteceria, jamais acreditaria. Ela? Fazer isso? Com o lugar que quis tanto? Nunca! A universidade era a concretização de um sonho, mas ele não o era desde que se entendia por gente, e sim desde que se viu como gente, tarefa mais complicada pra ela: mulher, negra e pobre.


O despertador tocava e ela fingia não ouvir. “Como um sonho pode ser tão sofrido?”, se questionava, e cada vez mais se embrulhava e se encolhia na cama. Foi quando um despertador melhor, mais potente e mais efetivo chegou, era Maria de Jesus, mãe de Rita, que sempre acordava ainda mais cedo para fazer o café da filha, não que fosse necessário, mas ela fazia questão e ele vinha acompanhado de um bom dia carinhoso, uma oração e um beijo na testa que preparava a filha para o dia.


Na casa pequena, eram só Maria e Rita, o marido/pai as abandonou logo que soube da gravidez; casa de pouca gente, mas de muita força e de muito esperançar. Maria sempre prezou pelo estudo da filha, ela foi à escola quando criança, mas teve que abandonar para ajudar na renda de casa. Não aprendeu nada além do suficiente para se virar na vida, por isso mesmo sempre fez o possível e até o impossível para que Rita estudasse, passasse de ano e se saísse bem. Se não tinha o conhecimento dos livros, lhe transbordava o apoio, a motivação e o encorajamento dado a Rita, que foi crescendo e apesar dos obstáculos, alcançava cada vez mais um lugar jamais encontrado e até mesmo permitido para o restante da família, o lugar da educação.


Durante toda essa trajetória, Rita sempre estava acompanhada de livros, mas era atraída de forma incomparável pelos de narrativas e de poesias, era por meio deles que descobria novos mundos, que se imaginava em outros lugares, que lhe era permitido sonhar. E assim, entre páginas, encontrava a força para escrever sua própria história. Com isso, veio o término do ensino básico e o ingresso no ensino superior; sempre a muito custo, mas com muita destreza e competência.


Naquele dia em que o despertar para a realidade foi mais difícil, Rita se levantou, se arrumou, ajeitou suas coisas, tomou café na companhia da mãe e se preparou para ir para a universidade. A mãe, a acompanhou até fora, sorriu e lhe deu a benção. E enquanto a imagem de sua mãe, na porta de casa, ia ficando cada vez mais distante, Rita voltou a refletir sobre sua vida. Não tinha dúvidas de que a mãe considerava a entrada na universidade como uma vitória, aliás ela sempre valorizou o estudo, dizia que era a herança que podia deixar. Rita concordava com a mãe, mas não demorou muito para descobrir que na universidade era preciso lutar e resistir diariamente, e ver tal vitória cada vez mais longe.


O que explicaria o que Rita estava passando? Acontece que mesmo adentrando no cenário universitário público, supostamente de e para todos, ela nunca se sentiu parte integrante, nunca se sentiu pertencente, e logo viu que não se tratava de um lugar acolhedor para pessoas como ela e com seus marcadores sociais. De tanto não se ver e não se reconhecer nos outros, questionou até o fato de merecer está ali. Além disso tudo, pairava sobre ela uma outra questão: entrei, mas como permanecerei? Esse questionamento era reflexo tanto de condições psicológicas quanto de condições sociais que se mesclavam e caíam como um peso sobre Rita.


Era um peso maior do que se podia suportar, mas ela era a primeira a chegar até ali, o que trouxe muitas expectativas; isso estava implícito e ao mesmo tempo explícito, tanto que Rita nem mesmo ousava ver o desistir como opção. Desistir lhe era autorizado? lhe era consentido? Não; era o que ditava a mesma sociedade que a exigiu, a desacreditou e a excluiu. Nos espaços de uma universidade pública, ainda assim elitista, a classe social não era mera questão de dinheiro, ela moldava valores, atitudes, relações sociais e preconceitos que definiam o modo como o conhecimento era distribuído e recebido, tudo isso ainda potencializado por se tratar de uma mulher negra. O desistir - termo esse já muito carregado - aos olhos da sociedade lhe definiria como fraca, como incapaz, aquela que não teria feito por onde, aquela não teria se doado o suficiente e aquela que não queria de verdade; o tal desistir invalidaria sua trajetória e ainda mais, confirmaria todos os achismos que foram sendo impostos a Rita durante toda a sua vida.



Se não lhe era dado lugar, voz e vez, Rita encontrou nas páginas em branco de um velho caderno uma forma de lidar com dor, não que ali estivessem resolvidos todos os seus problemas, mas a forma de se ver e de se colocar diante do mundo mudava a cada nova linha escrita. Ali, Rita não precisou escolher entre duas experiências, escrita ou curso, mas foi por meio de uma que começou a acreditar-se capaz de habitar confortavelmente a outra, inventou criativa e poeticamente, maneiras de cruzar fronteiras, maneiras de transgredir. Diferente dos livros, a academia não é o paraíso, mas o aprendizado nela construído é um lugar onde o paraíso pode ser criado, se antes de tudo, for sonhado.


gisellerdsantos@gmail.com

Comentários

  1. Giselle que honra é te ler. Um conto de tanta gente contado com tanta doçura.

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    1. Obrigada! ❤
      Fico muito feliz por ter gostado e ter dado esse retorno.
      A honra é minha!

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  2. Giselle Santos25/8/21

    Obrigada por compartilhar, professora Denise.
    O conto é fruto das nossas partilhas em aula.
    Sobre paraísos: se podemos sonhar, podemos construir. ❤

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  3. Ah, Giselle, q mtas Ritas se encontrem e se reconheçam em sua narrativa tão verdadeira e clara! Mto bom ler vc!

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    1. Giselle Santos25/8/21

      Ô, Raphaela... belas e potentes palavras! ❤
      Por mais encontros e identificações!
      Que essas forças se unam!
      Muito obrigada!

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  4. Querida Giselle, que alegria te ler aqui, te encontrar nesse mundo de aventuras e desventuras imaginárias e potentes que escrever nos permite adentrar. Adorei que a personagem fosse Rita (hahaha)....

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    1. Giselle Santos27/8/21

      Ô, você é pura escrita, e mais, pura poesia! E sobre a Rita, diria que o destino prega peças, né?! Mas foi a melhor escolha! Obrigada! ❤

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