Especular

 


Tinha os cabelos como a noite sem lua, sem estrelas; o breu desgrenhado e rebelde ocupava boa parte do centro do espelho, era um tipo de espetáculo inédito, todos os dias. Os olhos, desse marrom mais comum que havia, eram indecifráveis no relance, tristes nos primeiros minutos e muito intensos ao longo das horas; tinham uma espécie de ânsia, sofreguidão, não entendia bem. O nariz um pouco torto e o queixo anguloso lhe davam um ar de caricatura, foi o que lhe disseram uma vez, apegou-se à ideia.

Tinha as mãos grandes, palmas esborrachadas e dedos longos, nelas já saltavam veias azuladas, o que lhe causava certa aflição se ficava olhando muito. Tremiam um pouco pela manhã, mas seguiam firmes e ardilosas no trato das minúcias.

No pescoço curto, pendia uma correntinha de prata com um crucifixo delicado. Analisando bem, aquilo parecia muito deslocado, no fundo, gostava daquilo que sugeria uma contradição e lhe compunha tão naturalmente.

Não desgostava da boca fina, desagradavam-lhe os dentes pequenos e amarelados, mais para desalinhados, se observados em conjunto. Os incisivos laterais superiores eram particularmente feios, desproporcionais no tamanho e um pouco mais projetados; por eles evitava o sorriso aberto e as pessoas viam como antipatia. A pessoas. Bem, talvez tivessem razão, fazer o quê?

Por aqueles dias apareceu uma pinta no lobo da orelha esquerda, olhava com curiosidade e espanto as mínimas marcas que o tempo fazia em si, sentia-se a parede assinalada por Edmond Dantès e riu de tal comparação. Rir de si era o mais alto nível de intimidade que podia conceber. Anos construindo essa intimidade, um tempo imensurável da forma convencional, diria. Tempo. Andava em conflito com o próprio.

A cada dia demorava um pouco mais para reconhecer como seu, o rosto que lhe olhava no espelho. Fitava aquela pessoa desconhecida com genuína surpresa e, por fim, aparvalhava-se com a descoberta de si. Um susto, uma angústia. Em um dia bom, usava da polidez: “prazer”. Num dia ruim, blasfemava: “quem diabos é você? Que porra é essa?”. Em muitos dias, observava em silêncio e esperava não sabia o que. Ficava. Como se alguém tivesse apertado o pause para ir ao banheiro no meio do filme e fosse o próprio filme.

Do centro do espelho o mistério saltava, com as mãos em garra na jugular. Um tanto lhe sufocava, outro tanto se lhe esvaía. Às vezes chorava, mas quase sempre ria e, quanto mais se expandia o mistério, menor lhe parecia.

 

Comentários

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  2. Esse outro que chega nos muda, nos faz desver nós mesmos. Ah, esse outro que mora em mim e chamo, por vezes, de eu....

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  3. Eu, eu mesma e meus segredos que só segredo para mim. adorei

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)