O fio das horas
Uma filha de Nix, assim me descreveria na hora exata em que, aturdida e atormentada, rolava na cama pela ducentésima septuagésima nona vez. Meus olhos faiscantes buscavam a escuridão mais profunda, ardiam flamejantes porque ainda vislumbravam sombras e nada queriam ver. Meus ouvidos desejavam o silêncio abissal do nada e, no entanto, ouviam as batidas fortes do meu coração teimoso e, pior, o eco dos pensamentos velozes e precisos demais. O calor, eu queria não gostar, esfregava em minha pele seu desejo de expansão e posse, o domínio absoluto da minha vontade, rendida. Era bom e era forte e era assustador. Completamente à vontade naquele desconforto, perverso e banal, entendi que a vida era isso mesmo, do início ao fim, o que nem remotamente a fazia menos bela e interessante. Na ducentésima octogésima vez, escapou pelo hálito quente uma convicção falha, testei-a, não funcionava, senti medo. Apertei bem os lábios para que mais nada escapasse. Então, pelos poros, saíram alguns pudores, fiquei mais leve. Meu cheiro, acumulado no travesseiro, lembrava-me casa, uma casa longe, guardada nas minhas entranhas mais densas. Minha volatilidade escancarada debatia-se em janelas fechadas, insistente e constante, espreitava brechas, insuflava-se. Eu, como uma filha de Nix, senão a própria, estalava os ossos e alongava os músculos para que a carne não se esgarçasse demais, não rasgasse fatal. A memória, insubordinada, gargalhava de minhas voltas, os contornos de caminho, inútil. Tudo inútil e ela o sabia. Zombava de minhas artimanhas quase ingênuas, “viva-me”, “reviva-me”, insistia e eu, nem sei o porquê, resistia. Na tricentésima nonagésima nona vez que rolei, a exaustão dava sinais, meu corpo, antes tenso, relaxava; minha cabeça já não pesava e minhas mãos, já frouxas, achavam sua posição. Minha respiração intuiu o compasso exato, havia frestas por onde entrava alguma luz e ruídos da rua. Eu, depois dessa orgia íntima, soltei o fio das horas e a manhã me encontrou refeita, exceto, talvez, por uma incipiente olheira, nada o diria.
Uau! Fantástico.
ResponderExcluirNossa que agonia...
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