O lamento

 

O mundo estava muito diferente desde que ela havia sido inventada. Houve um tempo em que namorava com agricultores e agricultoras. As mulheres eram tão carinhosas que até conversavam quando era hora de tocar-lhe e arrancar-lhe das entranhas de sua terra. Sentia-se abraçada quando colocada no colo, sentia-se útil quando a mão do homem de pele queimada a tocava e a jogava junto de suas irmãs. Iria fazer a diferença em algum lugar. Sabia-se importante para as pessoas. Houve um tempo em que eram trocadas. Achava bonito de se ver os homens e as mulheres dizendo quanto valiam.

- “Um cento de banana por uma meia saca de arroz”! Gritava o moço no mercado. Eita que começava a briga, por que cada um diria o quanto sua comida era mais valiosa que a outra. Ela se sentia útil. Chegava à mesa de alguém e era divertido demais quando tinha criança que a abocanhava com todas as forças e alegrias. Sabia que voltaria para a mãe terra e seguiria nesse ciclo incessante. Tinha cumprido seu dever como comida.

-“Do pó vieste ao pó voltarás”, ouviu isso num velório e achou um destino muito justo para uma comida. Os humanos talvez não concordem por que não entendem que não se vão, apenas se transformam. Ela, a comida, amava aquela transformação, mas tinha uma grande mudança que ela já não gostava. Muita coisa esquisita acontecendo. O excedente uso de agrotóxico estava as deixando adoecidas e elas já chegavam às mesas carregando suas mazelas. A comida, aquela plantada e colhida que faz amor com as mãos do agricultor ou da agricultora tem sido substituída por latinhas ou colocadas elas mesmas dentro das latinhas.

- Que triste fim, pensou o milho! As brigas no mercado acabaram, estão se dando em outro lugar e agora inventaram um negócio chamado moeda.

- Quantas moedas valho? Perguntou o arroz.

- O que são arrobas? Quanto peso? Quanto valho? Perguntou a vaca.

- Viramos moeda de troca, pensou o sábio inhame. Ele viu estarrecido, a mudança na quitanda do tio César. Lá, aquele homenzinho trocava por moeda suas comidinhas, ainda era estranho o uso do metal para troca, mas as comidinhas começavam a entender que as coisas mudam mesmo, mas quando viram sr. César deixar de doar a banana para o menino com fome, ou aliviar no preço para a velhinha aposentada e pagar um guarda armado para ficar na frente de sua vendinha, aquilo foi demasiado triste para as frutas, carnes, cereais e legumes que assistiam a tudo. O homenzinho disse:

- Agora o vagabundo quem quiser comer terá de pagar, ou leva bala.

- Quando nos tornamos motivo de morte? Pensaram as comidas que agora se sentiam inúteis. Quando deixamos de ser motivo de festa e confraternização? Aos fins das colheitas as pessoas se divertiam, dançavam e riam por que éramos muitas e alimentávamos toda a comunidade. Agora parecemos escassas, não chegamos em todas as mesas, e se chegamos é um privilégio de poucos.

 

Comentários

  1. Essa dura realidade é mto triste, comida ser privilégio e é...

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  2. Uma tristeza ilógica. Quanto mais produção,mais fome. 😔

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)