Um dia qualquer
Pensava coisas desconexas. O pássaro cinza e azul que se movia aos pulinhos no fio de alta tensão e que ela enxergou de rabo de olho enquanto escovava os dentes após o almoço. O calango que ia e vinha debaixo da máquina de lavar, como um trabalhador de fábrica a bater ponto em horários definidos. A cadela que se posicionava embaixo das folhas ainda fixadas nos galhos da papoula de forma a fazer com que a planta lhe acarinhasse a cabeça. Que benção quando seus olhos se abriam para ver a intensa beleza perdida no frisson do cotidiano. Naquela noite, pendurou uma rede na varanda. O céu de um azul ainda marcado de laranja mostrava sem o menor pudor sua natureza paradoxal: ser imenso (infinito?) e miúdo. A miudeza falsa de cada estrela que piscava suas luzes de adeus. Quantos recados em código que não entendemos elas nos diziam? Estariam alertando os habitantes de outras esferas sobre um futuro terrível? Uma descoberta metafísica tão maravilhosa que urgia por ser espalhada? Seriam bilhetes de amor, como os que em algum lugar e tempo mandavam os amantes no rádio? Quem sabe, uma palavra que, desinteressada de destinatários, abraçou o vácuo? Fosse o que fosse, não compreendíamos. E, sinceramente, isso não lhe importava. Estendida ali no ar, nessa inversão da natureza das coisas que a rede proporciona ao colocar corpos pesados a flutuar (a rede era uma invenção melhor que o avião, matutou consigo), o mundo não precisava ter significado algum. Em raríssimas ocasiões como aquela o maior de todos os milagres ocorria: existir bastava!
Sim, basta existir. Fantástico
ResponderExcluirDe fato, o mundo não precisa de significado, a rede está pau a pau com o avião e existir basta. Agora, a coisa das estrelas... Código morse dos amantes, inquestionável.
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