O bicho
De longe, parecia muito delicado e frágil. Aproximaram-se. Pé ante pé. Olhando-lhe àquela distância, já viam suas penas coloridas. Ora a luz do sol batia e viam-se que algumas cores se multiplicavam em outras na medida em que cintilavam. Diante de tanta beleza, o impacto era inevitável. O grupinho tentava conter a excitação, mas as vozes já se alteravam com a animação. Foi preciso que o ‘chefe’ fechasse a cara e com o arregalar dos olhos reestabelecesse o silêncio. Mais uma passada em direção ao bicho. Mais encantos revelados. Um misto de euforia e confusão assolando todos. Prender bicho assim não podia ser certo.
Certo ou não, seguiram com o plano. Cercaram o bicho. A princípio as grades circundaram um espaço grande. Depois foram estreitando. Estreitando. Até que restou ao bicho só uma gaiola.
A culpa fez com que ninguém se atrevesse a ir admirar o bicho de perto. O fato dele não reclamar, nem um piado sequer, daquela prisão, daquela injustiça de terem lhe confiscado a imensidão do mundo, fazia latejar mais a dor que cada um sentia na sua alma. Mesmo o chefe, com toda a empáfia própria aos chefes, sabia que bicho como aquele não se prende.
Já era madrugada e todos dormiam quando o mais novo da equipe, um moleque de olhos muito negros, decidiu chegar perto do bicho. Sentou-se com as pernas cruzadas em frente à jaula, ergueu a cabeça e encarou o bicho. Surpreendeu-se em descobrir o bicho acordado, encarando-o de volta com altivez. O bicho não era frágil. O menino deu-se conta que a beleza podia ser forte, podia até ser belamente feia e triste, por mais paradoxal que isso soasse a seus pensamentos. Veio a imagem da bomba que viu num livro de história. Uma bomba que criou morte e uma rosa de fumaça. Não, não, corrigiu-se: aquilo era uma feiura bonita, coisa diversa....
O bicho parado, esperando todas essas ideias correrem na cabeça do menino. Era bicho paciente, via-se fácil. O moleque fez menção de tocar-lhe. Ele assentiu indo para perto das barras da gaiola. O menino pensou que talvez o bicho estivesse com fome. Ofereceu-lhe pequenas frutas. Ele aceitou, mas comeu, obviamente, por educação. Não tardou para o menino entender que o bicho lhe falava em sua cabeça. Deu fé disso quando, no meio daquele breu silencioso que os envolvia, ouviu dentro de si uma voz a dizer “obrigada, a frutinha está bem doce”. Deveria ter ficado assustadíssimo, mas a beleza do bicho era tão surreal que fazia a realidade flutuar e contorcer-se. Foi sem mover os lábios também que lamentou a gaiola, pediu-lhe perdão envergonhado de não ter coragem de lhe propor soltura. O bicho sorriu com ternura: estou acostumado às prisões, assim como você está. O moleque não captou, arguiu que nunca estivera preso. O bicho, então, perguntou-lhe: “Não tens nome?” E, instantaneamente, ouviu um “Claro que sim, sou Felipe”. Com muita suavidade, o bicho murmurou já se enroscando para dormir: “Todo nome é uma jaula”.
Adorando q essa disciplina me proporcione essas pérolas, "todo nome é uma jaula."! ❤
ResponderExcluir*esteja
ExcluirMas que espetáculo. Mudemos os nomes, os protocolos, abramos as gaiolas.
ResponderExcluir“Todo nome é uma jaula”. Porra! Que coisa linda!
ResponderExcluirPessoas, obrigada, só agora vendo os comentários 💕
ResponderExcluirEu fico sempre a imaginar cenas. Que minhas cenas não aprisionem bichos. Né a toa que a noite fale dos corajosos e amorosos. Bjo
ResponderExcluirÉrica, me encanta que o mundo possa ser um ir e vir de cenas. Que alegria poder partilhar da tua visão e do seu teatro.
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