Conversa ao amanhecer

 

Chega um tempo, querido, em que dizer tudo é pouco. O silêncio da vida enfia-se em cada espelho no qual esbarra nosso rosto. Um silêncio que não comporta rótulos. Que resiste à pergunta ontológica de Hamlet. Um silêncio que ocupa espaço, mas segue intocável. Mais poderoso que qualquer mafioso.

Veja, no cordão estreito do varal, um passarinho pia. 

Os sons presentificam-se no colo do silêncio. Há que se ter muita força para embalar seus contrários, deixar que germinem. É esse o caminho, querido: aposte nas palavras que brotam dos silêncios, nas frases lacunares, com mais buracos do que conteúdo. Amplie seu vocabulário de modo a poder contornar com precisão teus indizíveis. São eles teus tesouros. Tesouras afiadas a revelar teus reflexos disformes.

Não, querido, não é preciso amar como se não houvesse amanhã. Amar basta. Excede. O amor, parceiro fiel do silêncio, desconhece o reinado do tempo. Nem infinito, nem eterno, habita em um universo paralelo, onde essas dimensões inexistem. Sim, você pode falar ‘eu te amo’ sempre que lhe convier. Só não se iluda. O amor desvelasse sem a muleta dos dizeres.

Ouça, o passarinho voltou. Baixou a vista e proferiu verdades que me vejo incapaz de compreender. Talvez, discordasse do que estou a lhe aconselhar. Talvez, concordasse e aprofundasse suas consequências. Quem sabe, ele estivesse a me declarar seu amor. Haverá amores, querido, como esse passarinho. Fugidios e indecifráveis. Diante deles, temos a chance de desfrutar dos prazeres confusos, das paixões incertas. Neles, nossos silêncios são de estourar os tímpanos. Desejo que tenha amores assim, para que deles extraia as cores que pintam tuas torções. A beleza de nossas deformidades é diretamente proporcional ao tempo que nos dedicamos a admirá-las. Vales verdes ou secos, pouco importa. Valem.

Agora, querido, deixemos de história que a vida clama nossa presença. O cheiro do café já bate à porta.