O historiador

 

Ele contava histórias de um jeito diferente. Suas palavras pareciam um presente. Um embrulho laminado, desenhado ou não, mas nunca sem brilho, recobrindo sentidos ou a falta deles. No início, resisti ao seu estilo. Não estava preparada para outros sons, outras imagens, senão as que me acostumaram desde a infância. O começo na abertura, o meio na metade e o fim na parte derradeira. Incomodava-me o desalinho da ordem, como se, por ser diversa da que eu conhecia, não pudesse ser. Aprendi a ouvi-lo aos poucos. Nas falas quebradas de suas fábulas que cruzavam sem permissão comigo na rua. O conto da menina cujo braço esquerdo era tronco de ipê.  O cachorro de argila que amava uma torradeira. Ainda que meus movimentos conscientes fossem de rejeição e crítica silenciosa – como alguém se presta a tantos contrassensos! – os fragmentos invadiam meus sonhos. Ele falava ao que em mim emudecia. Passaram-se meses antes que eu decidisse ir a seu encontro. Lembro-me de escolher uma roupa de tons pastéis, como se, pela palidez das cores eu pudesse me tornar menos visível, envergonhada que estava de ser atraída pelas subversões inocentes daquelas prosas poéticas. Naquela época, desejei que ele escrevesse livros, de modo que eu não precisasse me expor para experimentar o que ele oferecia. Um dia, já amigos íntimos, perguntei-lhe por que não publicava. Explicou que era impossível, porque a escrita congelava o ardor que fazia da colagem de imagens uma trama única. Muito depois, compreendi que era esse o motivo dele ser andante. As histórias o comandavam a errar de vila em vila, ávidas que eram por outros olhos, embora ele nunca houvesse repetido uma sequer em todos os seus trinta e seis anos de peregrinação. A cada povo cabiam fábulas específicas, como se eles as inspirassem, lhes dessem uma forma a ser colocada em seu exato avesso. Quando ele voltou ao meu povoado, dois anos após sua visita inaugural, eu não hesitei em estar sempre presente nas rodas que circundavam a fogueira que ele acendia em frente a sua cabana portátil nos finais de tarde.  Na terceira visita, eu já o esperava ansiosamente, torcendo que a Terra corresse mais rápido ao redor do sol, na esperança de que suas fantasias me abraçassem novamente. Minha vida retamente embalada no tecido lógico dos começos, meios e fins, já não me satisfazia. Urgindo pela vivacidade das histórias, por seu efeito em mim, decidi seguir o historiador. Hoje, sou tão improvável quanto os personagens por quem me apaixonei. Essa noite, sou mulher com pés de mesa e cabeça de floresta a sair de mãos dadas com um homem que virou uma nota musical. E amanhã? Amanhã, é outra história.

Comentários

  1. Conta-me, pois, as histórias q ouviste, preciso-as. Que belas imagens enxerguei!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. ❣️ eu não as sei, às vezes, sento ali ao redor da fogueira dele e roubo uma ou outra palavra.

      Excluir
  2. Eu eu me deixei nessa aldeia. Não quero mais sair de lá. Aguardando o historiador...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)