Ontem, quando foi criança

 


Pegou a casquinha de sorvete, só tinha xarope laranja, gostava do roxo, mas não tinha. Fazer o que? Foi um pouco frustrante. Também não tinha mais do azul e nem do vermelho escuro. A casquinha estava meio mole, não faria barulhinho ao ser mordida, grudaria no céu da boca, igualzinho à hóstia da missa de domingo. Sentiu um pouco de aflição, depois decidiria se a comia ou não. Deu uma lambidinha na ponta, só pra acertar o formato, o doce azedinho não era tão bom no final, deixava um gosto esquisito na boca, um gosto amarelo forte.

Fazia muito calor, por isso andava procurando pela sombra, mas era difícil. Poucas árvores na rua, o sol alto, logo o sorvete começou a derreter, apertou o passo. Escorreu um pouco no dedo, limpou com a língua, já tinha jogado o guardanapo fora lá atrás. Papel ruim, parecia plástico e escorregava na casquinha. Devia chupar logo o sorvete, não só o caldo escorrido do que derretia, mas prometeu a si que o faria em casa, no alpendre fresquinho, bem devagarinho para aproveitar tudo. Não imaginava a velocidade com que se desmanchava o sorvete depois que começava a escorrer. A agonia foi crescendo. Lambia os dedos melados, a casquinha amolecia ainda mais e começava a se deformar, tentava andar mais rápido, mas tinha medo de deixar cair o sorvete e ele derretia e escorria e melava tudo.

Agora tinha pouco menos de meio sorvete, as mãos sujas, a casquinha molengada, uma enorme vontade de chorar e o gosto amarelo ainda mais forte na boca. Nada de alpendre, nada de saborear com calma, nada de sorvete de xarope roxo e casquinha que estala quando mordida. Talvez devesse ter comprado um pirulito, desses coloridos, com muitas voltas. Engoliu um bocado de sorvete, sem gosto, sem graça, só o gelado queimando na garganta a raiva que não gritava.

 

Comentários

  1. E quantos sorvetes a gente acabando engolindo antes de chegar no alpendre, né?

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  2. Senti um gostinho de infância amarga...

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