UMA AMIZADE INUSITADA
Há amizades inusitadas na vida. Amigos que parecem opostos, mas são como unha e carne, revelando nossa incapacidade de enxergar as complexidades e os muitos meandros das pessoas. Tem-se, também, as amizades improváveis que, mesmo nascidas de encontros casuais, vão resistindo à prova do tempo e da distância. Há tudo isso e muito mais porque o reino humano é afeito ao imprevisível e ao que excede.
Mas, confesso, que mesmo ciente disso tudo, me pego reparando curiosa em minha nova relação de amizade. Não me surpreendi com o fato do amigo ser bicho. Desde criança considero meu vínculo com certos cachorros algo que beira o sagrado. Uma amizade de palavras unidirecionais, de troca de olhares e muita presença. Mas, venhamos e convenhamos, entre um cachorro e um calango há um abismo.
Sim, um calango. Um daqueles serezinhos pouco charmosos que correm ao menor sinal de aproximação de pessoas e usam como mecanismo de defesa a tática bastante falível de se fingir de mortos. Eu mesma os encarava com desprezo, embora desse a eles o mérito de nunca ter ouvi falar de um calango que se jogou em alguém ou coisa do gênero.
Há uns dois anos, porém, comecei a trabalhar mais horas sentada ao lado do janelão de vidro do meu escritório. Do lado de lá da vidraça, há um pequeno espaço de terra com algum mato delimitado por uma estreita calçada, um muro e uma porta que leva ao quintal. Apesar de não ser das paisagens mais atraentes, é para lá que direciono minha vista enquanto penso sobre o trabalho ou busco fugir dele. Foi assim que conheci meu amigo calango.
Completamente ignorante da biologia calanguística, intuo que essa classe tem uma boa percepção sensorial que os permite detectar os ínfimos movimentos dos corpos ao seu redor. Foram várias as ocasiões em que, do lado de cá da janela, virei a cabeça e o calango acelerou para o vão abaixo do portão à procura da segurança do quintal. Com o passar do tempo e a repetição quase diária do ritual, ele foi se acostumando. Eu também fui, é verdade. Íamos cautelosamente observando nossas rotinas. Fui aprendendo que ele gostava de comer formigas e tomar sol. Soube que ele me considerava sua amiga, quando passou a tomar sol na calçada não apenas sem medo do meu rosto virado na sua direção, mas quase a me convocar como testemunha de seu banho de luz e calor.
Meu amigo calango, cujo nome eu não sei, me ensina sobre a vida com sua serenidade atenta. Quando ele se estende sob os raios quentes do sol para garantir a própria temperatura corporal, me recorda que a vida é frágil, dependente unicamente daquilo que está a nosso alcance agora, e, por isso mesmo, ela tem uma dimensão mágica. Desconheço se minha existência o instiga ou se tem alguma serventia para ele. Todavia, ensinamento e serventia não são bons parâmetros para determinar amizades. Arriscando errar, direi que amizades tem menos de utilidade e mais de inefabilidade. As melhores amizades se sustentam naquilo que é inexprimível. Daí que, em alguma medida, toda amizade é inusitada. Gente, cachorro ou calango, pouco importa, porque o que torna uma relação digna do nome ‘amizade’ é o que escapa, mas nunca deixa de ser presente, algo entre o afeto, a banalidade e o extraordinário de todas as coisas.
Ah, q texto gostoso! Afeto, banalidade, extraordinário, inefabilidade, é isso tia, essa coisa mágica, a amizade. Ah, voltei na foto pra procurar o calango inspirador rsrs
ResponderExcluirHoje ele não veio, chuva o dia todo...
ExcluirMais que perfeito. Ah amizade...
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