À vista ou parcelada?

-Quer sua sorte à vista ou parcelada?

-Parcelada, gritei já à entrada do túnel corporal que fazia a travessia para esta vida.

Quase imediatamente depois, a invasão da luz artificial, a mão gelada e empelicada do médico e os sons dos aparelhos e das vozes na fechada sala hospitalar levaram aquela memória para os recônditos mais afastados da minha consciência. 

Passaram-se 44 anos até que aquela estranha lembrança retornasse. Tampouco sei explicar o que a trouxe à tona agora e o que faz dela não uma invenção subjetiva, mas uma recordação. Pouco importa. O que causa inquietação deliciosa na minha cansada cabeça de mulher de meia-idade – seja lá o que isto quer dizer, o que significa que, provavelmente, nada quer dizer – são os elementos e opções presente na pergunta pré-natal. As implicações que a convicção de que, em algum momento remoto da nossa (pré)existência, podemos escolher sobre nossa própria sorte são profundas e impactantes. Mas, também, não é neste campo que minha mente borbulha. A mim, incomodam aspectos mais simplórios e pessoais: O que me levou, no auge da ignorância sobre o cerne essencial da questão que me foi feita, a eleger uma sorte parcelada? Que diferença aquela escolha prematura faz e seguirá fazendo em minha vida?

Vou, por partes – veja só que ironia! –, tentando encontrar indícios para atravessar estes labirintos prosaicos do meu pensamento. Imagino, de partida – tudo parece ser partido agora, não só minha sorte – que agi bem naquela resposta impulsiva. Aos 44, prezo a sorte que me chega a prazo, afeita que sou às surpresas. Pois, diferente dos boletos e contas, na sorte as parcelas são imprevisíveis e desiguais. Não respeitam data ou acordos, não mandam cartas ou atendem ligações de cobrança. Entretanto, vez por outra parece que elas vêm acrescidas de juros. Há nisto uma beleza selvagem. Uma sorte que brinca de esconde-esconde e que, ao não avisar de sua próxima visita, se mostra sempre mais saborosa do que, de fato, é. Seu gosto e encantamento são inseparáveis de minha alegria em recebê-la. Sua importância nutrida pela minha saudade ansiosa. Mesmo quando vem mirrada, quase não vindo, ela é louvada.

Muitas vezes, tive sortes mínimas. A maré de sinais verdes no trânsito ensandecido quando eu estava prestes a perder a hora. O prendedor de cabelo no fundo da calça, quando o vento o havia assanhado irremediavelmente, fazendo-o entrar constantemente nos olhos. E tantos outros que tais. As sortes mínimas são como pequenos grãos de açúcar. Não servem propriamente para adoçar a boca, sendo só lembretes de que há, em algum lugar, uma fonte de doçura. 

Recebi, por óbvio, sorte em fragmentos maiores. Em geral, foram elas que me levaram ao encontro daqueles sem os quais não seria quem sou. E, se isto lhe soa como pouca modéstia, sabia desde já: não é! Ser quem sou é ser plena de falhas. E, por sorte – grande! – aprendi, com quem fui colecionando no álbum de amizade da minha história, que também as falhas merecem respeito. Eis aí um testemunho que julgo importante de minha sorte: quantos neste mundão olham para suas faltas com suavidade? Quantos recebem amparo para ser somente o que são e o que podem ser?

Quanto mais analiso, embrenhando-me nos corredores deste jardim mental labiríntico, mais me convenço do acerto de minha escolha. Cogito como seria se recebesse todo o meu estoque de sorte de uma só tacada. Nasceria rica? Teria tidos, desde o primeiro segundo de vida, a presença de tudo e todos que iria precisar ao longo dos anos? Teria ao invés de uma lista enormes de sonhos por-vir-a-ser um rol infindável de realizações? Sendo como sou, suspeito que, tendo tudo em mãos, eu nem saberia reconhecer a grandeza destas coisas. Seria, provavelmente, uma dessas pessoas insuportáveis que não entendem que o mundo é doce e amargo. Que o doce se torna mais doce, depois do amargor ter deixado seu aperto na língua. E, que, mesmo no amargo há um vestígio de seu avesso. Acho que, por ter querido uma sorte parcelada, consigo notar a presença que é a falta. O valor de ser uma viajante que nunca atinge seu destino final.

Talvez, é claro, seja tudo isto um grande despeito. Uma forma de validar e romantizar uma decisão ridicularmente errada que, em última instância, fez de mim humana e não outra coisa qualquer. Não sei. Queria terminar contando que, em me sendo apresentada novamente a pergunta, eu optaria pela alternativa inversa só para poder experimentar como seria.  A verdade, todavia, é que não acho que faria isto. Ficaria, uma vez e mais outra, com minhas frações de sorte disformes e jogadas ao acaso. Pode ser que esta sensação que me impede de alterar minha escolha, seja mesmo fruto do azar que nunca abandona quem só acessa à sorte de modo quebradiço. Pode ser... Mas, para ser sincera, por ora, além de não saber sobre isto, também não estou nem um pouco interessada. Foda-se a sorte grande, eu quero mesmo sentir detalhadamente todos os seus pedaços!


Comentários

  1. Anônimo16/7/22

    Tia, q puta texto massa! Adorei a coisa de sentir detalhadamente todos os pedaços da sorte, mas pensa-la como fonte de doçura, minúsculos grãos de açúcar, sem dúvidas, é encantador! Desconfio q minha sorte tb foi parcelada e agora torço para q tenha sido em mais parcelas q eu possa receber, quero morrer credora... rsrs

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  2. Pois é, tia, logo eu que gosto de comprar tudo à vista, me vi desejando parcelas a perder de vista 😆

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(Saber o que o outro pensa, faz diferença...)