As manhãs devem ser calmas

 


“A desabalada urgência que me precipita à vida contrasta com o marasmo dos dias, bem, não é exatamente um marasmo, muito acontece, o tempo todo, porém, passo os olhos displicente, falta a intensidade a sacudir-me. Falta o frio na barriga que explicita o desejo, aquilo que exacerba. Sim, quero muito, muito mesmo. Não suporto o raso, só molhar os pés não é pra mim. Eu preciso é do mergulho fundo, subir sem ar, emergir na água fria abundante, no azul desconcertante do céu limpo, sem nuvens, sem tréguas. Esse fôlego que nunca se sabe se aguenta, essa vontade que desafia a calmaria, instiga a quietude do corpo. O coração agitado, pulsando no olhar sereno, não, você não sabe.”

Ela jogou-me isso no peito sem o menor pudor, sem hesitação nenhuma, enquanto soprava o café no copo americano, ainda era de manhã e eu nem conseguia pensar direito ainda. Tive ímpeto de responder, mas fiquei olhando sua boca e era verdade, eu não sabia.

Passei manteiga numa banda de pão e a dobrei de comprido para morder. No meu copo o café com leite adoçado parecia coisa de criança perto do seu café amargo. Éramos contrastes, e isso era bom. Era? Eu tinha certeza que sim, quer dizer, será que eu era a piscina infantil de sua vida? Olhei para seu cabelo preso, os olhos alertas, o rosto lavado. Era comum, exceto por aquilo que não sei explicar e transcendia tudo e a fazia bela e me deixava excitado. Não só na cama, mas na vida.

“Estou tão cansada, podemos passar o dia entre o sofá e a cama?”

Seria o pedido perfeito não fosse uma bruta quinta-feira, dia de reunião com a equipe de manhã e fechar relatório à tarde para apresentar na sexta-feira pro novo gestor. Ah, eu ficaria fácil! Entrei no jogo para ver a lonjura de sua imaginação, disse logo que adorei a ideia e que podíamos incluir o chuveiro no programa, e a pia do banheiro também. Ela deu uma risada gostosa, me chamou de safado e olhou as horas, nada nela indicou que estivesse atrasada. “As manhãs devem ser calmas”, dizia a pessoa cheia de urgências, mas sem nenhuma pressa. Essa aparente contradição me deixava confuso quando eu estava concentrado. Ela me deixava ansioso quando eu não estava distraído.

Não, eu não sabia mesmo, por isso ficava e insistia, não pra saber, mas pra viver. A gana com que ela me convocava era vertiginosa e me exauria, mas era bom, bom de um jeito que não sei explicar. Parece que tudo rodava e a coisa acontecia rápido demais para mim, mas então ela me segurava a mão e eu só ia. Eu achava isso.

“Você vai até tarde hoje?”

Eu não tinha certeza, mas se ela pedisse eu não iria de jeito nenhum. “Acho que não, tem planos?”

“Tenho. Vamos tomar uma cerveja naquele barzinho da praça, hoje deve ter um samba lá, não foi assim daquela vez, foi na quinta, né?!”

“Foi. Vamos. Eu te pego ou nos encontramos lá?”

“A gente se encontra lá, quem chegar primeiro pega a mesa, mas a gente se fala ao longo do dia.”

Não era uma afirmação muito convicta, era quase uma pergunta afirmativa, daquelas que você só pode confirmar. Claro que eu confirmei, faria isso ainda que fosse impossível. Era bom ter planos para o fim do dia, uma disposição nova se instaurara. Será que mais cedo, o que ela falou, foi pra mim? Eu não sabia, não entendia, parecia deslocado, seria eu a poça rasa, o céu plúmbeo, a âncora? Não estar desatento estragava tudo.

“Adoro quando você me puxa pela cintura e também quando segura minha mão na rua.” Ela sussurrou isso enquanto nos despedimos na garagem. Eu estava desprevenido, ninguém sabe o quão azul pode ser.

Não, eu não sabia.

 

Comentários

  1. Gostei demais!! Identificada, mas sem saber direito com o quê! E amei esse final... "Ninguém sabe o quão azul pode ser"

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